25/09/08

Texto 18 ( Jornal "BADALADAS", 26 / 09 / 2008 )



AS AGUADEIRAS DO EXÉRCITO FRANCÊS


Pedro Fiéis*

As cantinières (numa tradução livre – aguadeiras), eram mulheres francesas a quem os regimentos davam uma autorização para a venda de comida e bebida, para além daquilo que eram as rações atribuídas a cada soldado. Tinham como única obrigação a de serem casadas com soldados do dito regimento.
O termo Cantinière veio substituir as Blanchisseuses, que em 1793 poderiam ascender a 4 por batalhão e as Vivandières, cujo número era aprovado pelo comandante de divisão. Quando foi proclamado o Império (1804) já os dois últimos tinham caído em desuso e cada mulher usava uma medalha indicativa da sua posição e que lhes concedia o direito a serem tratadas nos hospitais militares em tempo de guerra.
A sua função primordial era a de vender álcool, geralmente brandy de várias qualidades, que guardavam nos seus cantis (tonnelet) pintados de azul, branco e vermelho e presos em bandoleira por uma correia de couro, onde estavam pendurados os copos de cobre ou latão, em que serviam a bebida. Também efectuavam outros serviços, como cozinhar, lavar e coser a roupa, recolher lenha para as fogueiras e água. Se a oportunidade se deparasse, visitavam as aldeias próximas com o propósito de se abastecerem de víveres e se o produto fosse roubado, melhor, assim só tinham lucro nesta actividade.
Claro que não menos importante era o facto de constituírem uma muito necessária companhia feminina durante os longos meses das campanhas. Um dos mais famosos generais napoleónicos, Lasalle, chegou a dedicar-lhes uma canção nas vésperas da batalha de Marengo. Mas se por acaso se tornassem demasiado desordeiras, uma ordem do dia permitiria que os soldados pudessem pilhar os seus bens.
Muitas serviam até 30 anos no exército e se o respectivo marido fosse morto em combate, casavam com outro soldado para poderem manter a posição. Sobreviviam do salário do homem e dos ganhos com as vendas, mas os preços que podiam praticar eram obrigatoriamente baixos, sob pena de confiscação dos bens e não podiam vender a civis ou membros de outro regimento.
Não deixavam, elas próprias, de serem civis no exército e não tendo direito a uniforme, o garbo pessoal de cada mulher fazia com que envergassem uma mistura de vestidos de camponesa, com casacas militares e por vezes, o chamado bonet de police – o chapéu militar para ser usado nas folgas. Nas pilhagens, o que viesse para às mãos e servisse, era sempre bem-vindo.
Os filhos surgiam naturalmente, numa época em que não se conheciam contraceptivos, e na maioria das vezes acompanhavam as mães durante as campanhas. Existem relatos de mulheres que acompanharam os seus maridos no cativeiro, como foi o caso dos que foram aprisionados na ilha de Cabrera, em Espanha. Afinal, até na derrota sofriam as mesmas agruras, com os roubos, os ferimentos e as doenças, agravados pelas violações.
Apesar disso a sua coragem ficou demonstrada em diversos episódios, quando em plena batalha e a receberem fogo inimigo, corriam as fileiras dando de beber aos homens, carregando os mosquetes e não poucas vezes disparando-os. Ficaram-nos relatos de mulheres que chegaram a transportar os seus maridos feridos em grandes distâncias até chegarem a um hospital ou encontrarem uma ambulância.
Em 1807, na primeira invasão francesa, temos algumas a acompanharem os maridos na penosa marcha através de Espanha até à fronteira portuguesa e nesta altura era-lhes igualmente permitido trocar as mulas em que habitualmente viajavam, por carroças, compradas ou pilhadas, tanto fazia, integrando as outras carroças do regimento e estando sujeitas à autoridade do chefe da coluna.
Uma cantinière bem fornecida poderia ter consigo queijos, enchidos de várias espécies, salsichas, açúcar, tabaco, café, etc. Se possuísse para além disso uma tenda ampla, torná-la-ia no centro de recriação. Algo que na campanha referida só foi possível de efectuar já em Portugal, dada a falta de tudo na marcha até Lisboa.


* Professor e Investigador de História

Texto 17 ( Jornal "BADALADAS", 12 / 09 / 2008 )


AS DENÚNCIAS CONTRA OS PARTIDÁRIOS DOS FRANCESES

José NR Ermitão *

João Pinto de Carvalho (1858-1936) foi jornalista e autor de obras na área da olissipografia (estudos sobre Lisboa) e da etnografia. Em 1898/9 publicou “Lisboa d’outros tempos”, em 2 volumes, o 1.º intitulado Figuras e Cenas Antigas, o 2.º, Os Cafés – em que reúne artigos publicados em diversos jornais da época. Tinop (o seu pseudónimo) revela-se um vivo memorialista de factos, instituições e personagens das gerações anteriores à sua e com as quais ainda conviveu. Em 1903, publicou a “História do Fado”.
De Os Cafés transcrevo um texto que dá conta das denúncias e perseguições contra reais ou supostos partidários dos franceses em Lisboa, movimento que atravessou todo o país logo após a saída de Junot e incitada pelo próprio governo. E também um outro, de denúncia do oportunismo de alguns desses patriotas...

(As denúncias)

«Estas denúncias recebiam incitamento de um decreto que a regência fez publicar em 20 de Março de 1809, pelo qual autorizava a denúncia... de todos os sequazes dos franceses ou traidores à pátria, proibindo, todavia, o infamar qualquer pessoa com semelhante epíteto.
As denúncias choveram e quase se converteu em balda a acusação por espionagem e jacobinice. (...) Os comerciantes franceses... estavam naturalmente indicados como suspeitos. Mas não eram só eles. A lista dos portugueses e italianos marcados com o ferrete do jacobinismo era longa... (e cita pessoas das mais diversas profissões).
Indicavam mais como jacobinos, um marceneiro de S. Francisco, que fora muito de Lagarde (1) e em cuja casa estavam armas escondidas...; o Jacob Dorham, encarregado de negócios da Holanda, «que em todo o tempo tem sido o coriféu dos espias franceses»... (e continua a lista); o Cosmelli que, certa ocasião, estava a rir com um indivíduo por ter visto sair do Largo do Quintela o general inglês na sua carruagem, acompanhado de cinco guardas a cavalo. Indicavam também a casa da R. da Graça, 97, 1.º, em que se juntavam oficiais do 1.º batalhão nacional do paço da rainha... os quais todos faziam crítica, em verso e em prosa, dos actos governativos.
Muitos franceses, negociantes aqui estabelecidos, iam meter-se voluntariamente na cadeia para escapar às fúrias populares, como sucedeu ao livreiro Orcel. Outros viram as suas casas salteadas (sic) a pretexto de buscas, como aconteceu à de Jácome Ratton... em Alcochete.
Muitas dessas denúncias faziam-se por vingança, interesse cúpido, ou por despeito mal refreado.
Muitos foram expulsos do nosso país. Entre eles figuravam o barão de Serrabord... que usava de vários segredos de medicina; Henrique Solage, que fora mestre de música de diversos regimentos portugueses; Jacques Lebon, mestre de florete do príncipe regente... e Frederico Joly, guarda-livros dos Ratton.
A polícia tinha conhecimento de que havia ainda bastantes franceses escondidos. Em casa dos Ratton estavam dois que eram empregados em fabricar napoleões (2) no tempo do intruso governo.
Criaram-se então (1810) os bilhetes de residência. Dizia o intendente que este processo não devia chocar a nação, e parecia-lhe que lorde Wellington e o ministro britânico (embaixador) achariam justa uma medida que tendia a combater a trama do inimigo.»

(e o oportunismo)

«Passado um ano já havia alguns patriotas que se aproveitavam da estada de Massena em Santarém para ganharem dinheiro com os franceses. Os catraeiros (3) saíam de Lisboa com géneros que fingiam levar para os aliados. Escondiam-se nos esteiros e sinuosidades do Tejo e, pela madrugada, chegavam a Santarém, onde os vendiam por bom preço... Os moços de transporte das brigadas portuguesas também traficavam com o inimigo, atravessando para esse fim os postos avançados nos sítios mais próprios. E foi assim que o tenente-coronel Raimundo José Pinheiro conseguiu entrar naquela cidade, acompanhado de um desses moços, sob pretexto de vender chocolate.»

(1) General nomeado por Junot para responsável da polícia.
(2) Moeda francesa com a efígie de Napoleão.
(3) Tripulantes de catraias, pequenos barcos de proa dupla.


* Professor e Investigador de História

NOTA DA COORDENAÇÃO

As Invasões Francesas deixaram marcas duradoiras na sociedade portuguesa. É o que se evidencia no texto que hoje publicamos, o primeiro de outros que nos dão conta do modo como essas marcas se repercutiram no tempo.