16/06/10

3º SUPLEMENTO NO BADALADAS - 14 MAIO 2010

Primeira e última página do suplemento



Do papel ao terreno
a construção das Linhas de Torres Vedras
André Filipe Vítor Melícias

As Linhas de Torres Vedras, enquanto sistema defensivo, permitiram a Wellington travar o avanço de Massena sobre Lisboa em 1810. O facto de Portugal ter permanecido livre possibilitou que servisse de base a ofensivas do exército aliado de Ingleses, Portugueses e Espanhóis contra o território espanhol ocupado, permitindo ainda a Inglaterra a manutenção de um importante ponto de escala para a sua marinha mercante e de guerra, evitando a asfixia que Napoleão projectara anos antes ao decretar o Bloqueio Continental.
As Linhas como hoje as conhecemos não resultaram de um projecto estático, aplicado inflexivelmente ao terreno. Foram antes o resultado do trabalho intelectual e físico de muita gente, desde Wellington a Neves Costa, passando pelos 19 oficiais de engenharia ingleses, portugueses e alemães que dirigiram as obras até aos inúmeros anónimos - soldados e populares – que, uma a uma, edificaram as fortificações.
Ainda que tenham existido trabalhos anteriores de reconhecimento de terreno, dos quais o mais conhecido será o do oficial português José Maria das Neves Costa, é a Wellington que se atribui o acto fundador das Linhas: o Memorando de 20 de Outubro de 1809. Deixando temporariamente as operações que dirigia em território espanhol, Wellington dirigiu-se a Portugal para preparar a defesa para uma expectável nova invasão. Aqui realizou durante alguns dias um breve reconhecimento do terreno – certamente com base em material cartográfico já existente – tendo depois enviado ao engenheiro Richard Fletcher um memorando onde ordenava a criação de um sistema defensivo que garantisse o domínio de Lisboa, bem como um embarque seguro em caso de derrota do exército inglês. Para tal estabeleceu uma série de zonas que deveriam ser fortificadas de imediato, indicando ainda o número e o posicionamento dos efectivos militares, bem como eixos de comunicação que deveriam tomar em caso de se terem que deslocar. Além disso solicitou a Fletcher que continuasse o estudo do terreno para a implantação de mais fortificações.
Foi na sequência deste memorando que no dia 3 de Novembro tiveram início obras em S. Julião, na terceira linha, no dia seguinte em Sobral de Monte Agraço e no dia 8 em Torres Vedras. Provavelmente da mesma época são os fortes de Enxara dos Cavaleiros e do Alto da Ajuda.
Em Fevereiro de 1810 Wellington realizou um nova visita ao terreno, talvez motivado pelo ritmo lento a que as obras decorriam. Entre os dias 5 e 10 de Fevereiro Wellington esteve em plena região das Linhas, passando por Torres Vedras, Mafra e Vila Franca de Xira.
Como resultado deste reconhecimento assistiu-se à pormenorização e desenvolvimento do plano iniciado com o Memorando de 20 de Outubro. Nos dias seguintes as obras ganharam um novo ritmo, iniciando-se a fortificação das zonas de Mafra, Ericeira, Montachique, Bucelas, Vialonga, Alhandra, Arruda, Ponte do Rol e São Pedro da Cadeira. Com estas obras constituiu-se uma linha efectiva de defesa – a actual 2.ª Linha -, que, complementada por um conjunto de postos avançados (como Torres Vedras, por exemplo), possibilitava a cobertura das principais vias de acesso à capital.
No entanto, o tempo decorrido até à efectivação da invasão de Massena, permitiu que mais trabalhos fossem lançados. Assim, a partir de 17 de Julho de 1810, já sob o comando do engenheiro John T. Jones, foi iniciado mais um conjunto de obras com o objectivo de fortalecer ao máximo os flancos direito e esquerdo das posições avançadas. Até Outubro foram iniciadas as obras junto a Alhandra, bem como a fortificação do Vale do Calhandriz que visava impedir que Alhandra fosse contornada. Também a Serra de Serves foi reforçada, pela construção de mais dois fortes. No flanco esquerdo das posições avançadas tiveram início as obras de construção de três fortificações junto da Foz do Sizandro.
Para além das novas fortificações Jones também fez construir uma série de obras complementares – escarpamentos, terraplanagens, minagem de estradas e pontes, construção de vias militares, etc. Foi igualmente nesta altura que se estabeleceram e testaram os postos de comunicação ao longo do sistema defensivo e, para permitir uma melhor logística, dividiu-se o mesmo em seis ‘distritos’ com sede em Torres Vedras, Sobral, Alhandra, Bucelas, Montachique e Mafra.
Quando, a 8 de Outubro desse ano os dois exércitos começaram a chegar às Linhas, encontraram um sistema composto por duas linhas sucessivas de fortificações, cobrindo o terreno entre o Tejo e o Atlântico e uma terceira em torno de Oeiras, para proteger o embarque inglês em caso de derrota. No entanto, ainda não era o sistema que hoje conhecemos, pois, para acautelar algumas fragilidades foram logo iniciadas fortificações no centro da 1.ª linha (entre Catefica e Ribaldeira).
Após cerca de um mês frente às Linhas, Massena retirou para Santarém. No entanto, a incerteza de invasões futuras levou a que se tivesse continuado o trabalho de fortificação, nomeadamente no Vale do Sizandro, entre Torres Vedras e o oceano, onde a descida do nível do rio durante o tempo mais quente levou a que essa região fosse protegida com 18 novas fortificações. Estas construções, iniciadas em 1811 mas terminadas talvez só em 1812, marcam o final do período de construção das Linhas.
Entre os anos de 1812 e 1814, foram detectadas em Torres Vedras obras, já não de construção, mas de recuperação de alguns fortes e estradas militares, a cargo do Sargento Mor Lourenço Homem da Cunha d’Eça. Estas obras terão terminado em Julho de 1814, talvez na sequência do clima de pacificação decorrente da assinatura da Convenção de Paris e da capitulação de Napoleão.
Quando se perfazem dois séculos sobre a construção deste sistema defensivo que teve implicações tão sérias no desenrolar da guerra, aproveitar a oportunidade de conhecer melhor a sua História é igualmente conhecer em maior profundidade a identidade de nossa terra e de nossa região: o local onde se iniciou a expulsão dos exércitos franceses da Península Ibérica.

                                                                                     

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Portugueses no exército de Massena

Rui Prudêncio

Com algum espanto as autoridades portuguesas tiveram conhecimento de estarem incorporados no exército do general Massena oficiais portugueses. Esses oficiais pertenciam à Legião Portuguesa formada em 1808 e que se juntou aos exércitos napoleónicos em França. Em 1810, aquando da preparação da 3.ª Invasão a Portugal, o ministério da guerra francês ordenou que alguns desses oficiais se juntassem ao estado-maior de Massena, a fim de lhe dar apoio no relacionamento com as populações locais e no conhecimento do território a invadir. Atribuiu-se-lhes assim mais a função de ligação com os portugueses civis do que a função de combater o exército anglo-luso. Tal circunstância, juntamente com o facto de muitos deles serem, afrancesados, ou seja, adeptos da ideias mais moderadas da Revolução Francesa, de verem na administração napoleónica um factor de modernidade política e social e possivelmente a expectativa de integrarem o governo de Portugal após a esperada expulsão dos ingleses talvez contribuísse para aceitarem essa incumbência.

Apesar de não pretenderem a extinção política de Portugal como estado independente, esses militares foram vistos como traidores à pátria e como tal acusados pelo governo português. Formou-se um tribunal (Junta da Inconfidência) que os julgou e sentenciou à revelia. A pena foi a condenação à morte. E os condenados foram:

D. Pedro José de Almeida (3.º marquês de Alorna).
D. Agostinho Domingos Rolim de Moura Barreto (1.º marquês de Loulé).
Manuel Inácio Martins Pamplona Corte Real (general de brigada).
D. Álvaro Xavier Botelho (6.º conde de S. Miguel).
José Manuel de Noronha.
José Pereira Pinto (capitão de infantaria 11).
João da Gama (capitão de infantaria 16)
João Freire Salazar (sargento mor da Legião Portuguesa)
Francisco Taveira Cardoso.
Alexandre Henriques Lima.
Henrique Lima.
José Soares de Albergaria.
João Reicend (capitão de infantaria 16).
Piton (sargento da Guarda Real da Policia).
João António Ramos Nobre (sargento mor do regimento de cavalaria 5).
Fortunato José Barreiros (sargento mor de artilharia).
João Pedro Salabert (fabricante de chapéus)
Estevão de Carvalho (alferes)
Manuel Joaquim Rodrigues da Fonseca
João Mascarenhas Neto
José Maria Carvalho
José Alexandrino da Costa Fortuna
Cândido José Xavier

Destes condenados à morte nenhum cumpriu a pena por não estarem presentes em julgamento, à excepção de João Mascarenhas Neto que morreu de garrote na praça do Cais de Sodré. O condenado José Pereira Pinto (capitão do regimento de infantaria 11) foi mais tarde absolvido (1816) e o marquês de Loulé e o conde de S. Miguel foram amnistiados em 1818 e 1820 respectivamente.

Dos acusados, D. Miguel de Assis Mascarenhas (3.º conde do Sabugal) foi absolvido mas como medida preventiva foi desterrado para a ilha de S. Miguel. Os restantes acusados, João Pedro Salabert (fabricante de chapéus); Estevão de Carvalho (alferes) e Manuel Joaquim Rodrigues da Fonseca não foram condenados porque os seus processos judiciais não foram instruídos por falta de legalidade.

Posteriormente foram acusados D. José de Portugal e Castro (5.º marquês de Valença); D. Tomás da Silva (marquês da Ponte de Lima) e José de Vasconcelos e Sá (coronel), Miguel Bernardo de Meneses, Joaquim José Pombeiro Salvador Sá Benevides (5.º visconde da Asseca), tendo sido todos absolvidos.

Depois da Revolução Liberal foram os demais amnistiados pelo governo (decreto de 9 de Fevereiro de 1821), com a justificação de terem sido julgados à revelia, logo impossibilitados de se defenderem com prescreve o direito natural. O decreto de amnistia geral abrangia todos os indivíduos perseguidos por opinião ou comportamento político bem como os que se ausentaram de Portugal pelo mesmo motivo desde 1807.


Bibliografia:

SORIANO, Luz - História da Guerra Civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal comprehendendo a história diplomática militar e política d'este reino desde 1777 até 1834.Lisboa : Imprensa Nacional, 1866-1890, segunda épocha, tomo III, p. 99 -115.
Acessível na Biblioteca Nacional Digital em http://purl.pt/12103/2/

        
                                                                                         
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Tipologias de fortificação presentes nas Linhas de Torres Vedras

Forte - Obra militar de pequena ou média dimensão, isolada, dependente de uma praça principal ou funcionando de modo autónomo.

Reduto - Numa fortaleza, o reduto é uma obra geralmente quadrangular num pano de muralha de um baluarte. No contexto das Linhas de Torres Vedras aparece isolado. É, no entanto, confusa a aplicação deste conceito e do de forte, no contexto das Linhas de Torres Vedras. Por exemplo, o Forte de São Vicente é constituído por três diferente redutos interligados.

Bateria - Plataforma criada para a colocação de peças de artilharia.


Obras complementares

Entrincheiramentos – Tipo de fortificação de campanha, utilizado na época sobretudo para aproximação de tropas sitiantes aos locais sitiados. No contexto das Linhas, foram estabelecidos alguns entrincheiramentos, nomeadamente em Alhandra, como obra complementar aos fortes existentes junto ao rio Tejo.

Abatizes - Obstáculo construído a partir de troncos de árvores cravados firmemente no terreno e cuja extremidade visível é aguçada para obstar ao inimigo.

EscarpamentosEntrave artificial que consiste na criação um declive no terreno, ou aumento de um declive já existente, através da construção de um talude de terras.

Terraplanagens – Em vários locais das linhas procedeu-se à terraplanagem de pequenas elevações, para que não interferisse no ângulo de fogo de artilharia.

Minagem de estradas e pontes – Enquanto os exércitos contendentes se aproximavam, John T. Jones, o engenheiro inglês responsável pelas obras, recebe ordens de Wellington, via Richard Fletcher, para que se procedesse à minagem das vias de comunicação, para que pudessem ser destruídas à aproximação do inimigo.

Abate de árvores – Por toda a frente de combate, foram abatidas as árvores encontradas dentro do raio de tiro, para que não obstasse à artilharia e não permitisse que o inimigo encontrasse nelas abrigo para o fogo. Estas árvores serviam para construir os abatizes.

Estradas militares – Foi construída uma rede de estradas que interligava os fortes. O facto das estradas serem construídas nas vertentes protegidas dos montes, permitia que os fortes fossem abastecidos de víveres e soldados com mais facilidade.


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OPUS 2



Sobem e descem a encosta num vai vem
bois e jumentos por pederneira e matagal
pé ante pé às cegas sem descanso,
dia e noite entre nuvem bruta e o boreal
que os carregos urgem e o rumo é ficar
pronto para batalha rija e sem bonança.



Ao cabo de meses eis o forte de S. Vicente
em pedra construído por tenaz labor
de quem cavalgou a escarpa até ao morro,
homens e animais que em degredo
trabalhavam mais por cada jeira
que durante um ano de sementeira.



Abrindo as asas eis assim um pássaro
de trinta e nove bocas de fogo para
barrar a estrada que liga Coimbra a Lisboa,
cantar bem alto aqui é terra antiga
lugar de um nome só fundado
em osso vivo e bandeira alcantilada.



Mais que pássaro cantador se ouvem
passos dia-a-dia agora de quem
marinhando a encosta e mais além
vê seu próprio rosto nesse rosto
moldado há anos, imagem
do tempo golpeando sem limite.


Luís Filipe Rodrigues in: Escrito à Mão, Torres Vedras, 2010




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