Respondemos ao Pedro que nos deixou um comentário com algumas perguntas (não temos o seu mail para contacto mais personalizado).
12/11/10
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01/04/10
BADALADAS - Texto 48 - 2 ABRIL 2010
JOAQUIM MOEDAS DUARTE
Raul Brandão, no seu formidável livro EL-REI JUNOT, pinta em traço grosso e impressivo o drama da História europeia do início do século XIX, quando Napoleão e a nova classe político-militar que governava a França espalham o seu exército de 300 000 homens pelas nações que eles combatem e submetem e onde eles impõem e dispõem. Casas reais, mal afeitas aos novos tempos e às ideias revolucionárias – Liberdade, Igualdade, Fraternidade! – encolhem-se e resignam-se. Ou combatem com armas de outros tempos, tão ineficazes que chegam a ser ridículas.
A família real portuguesa escapou porque fugiu para o Brasil. Essa ideia não a tiveram os seus familiares espanhóis e Napoleão fez gato-sapato deles. Prendeu-os e pôs em seu lugar o seu irmão José, um novo-rico dos novos tempos.
Raul Brandão não tem piedade para com esta realeza timorata, com suas fraquezas e pecadilhos, enredada em casamentos de conveniência e adultérios mais ou menos secretos. Pois não diziam as más-línguas que a rainha Maria Luisa de Espanha se entendia demasiado com o ministro Manuel Godoy, amigo do rei Carlos, que o estimava mais do que ele merecia?
Raul Brandão usa fontes históricas fidedignas e os dados que expõe não são inventados. Mas não está interessado em escrever um tratado de História, com o rigor do aparato usual nesse tipo de livros, com notas, bibliografia exaustiva, citações, etc. Mais do que escrever História, ele interpreta a História. Talvez seja esse o segredo do seu fascínio.
Vamos ler:
«À primeira vista o drama de Espanha não passa de uma tragé¬dia burguesa: marido ultrajado, mulher, filho, amante — e rol da roupa suja. Como nas peças, basta pôr de pé as personagens para compreender o enredo. É uma mixórdia de assombro e de gro¬tesco: a ambição, a cólera, o sonho, as paixões, que avultam certas figuras, rebaixam-nos e apelintram-nos a eles. A gente sofre e passa. Só um consegue deter-nos; só ele conserva, amarfanhado e ton¬to, certa grandeza no ridículo. Eis as personagens:
É o pobre Carlos IV, feito manequim nas mãos da mulher, que o ludibria de acordo com o favorito; é Carlos IV, cego até comunicar ternura, e, apesar de tudo, inabalável na sua profunda confiança. Arrastam-no, mentem-lhe, perde tudo, mulher, trono, oiro, e já entre as mãos de Napoleão, sem coroa, sem reino, sem prestígio, ainda pergunta numa aflição: — O Manuel? Onde está o Manuel?
É a rainha, a impetuosa e lasciva Maria Luísa. Tem 50 anos. Até aí o tropel da vida, o sangue, a miragem, não a deixaram ver a rea¬lidade em todos os seus aspectos. Primeiro rebate da velhice, pri¬meiro sabor do sepulcro. Tantas horas perdidas... Pouco te resta já - e já rugas, a pele ressequida, os olhos apagados. É quando a mulher se apega com desespero — restos de colo, restos de cabelo - ao pó de um sonho extinto. Momento em que a vida e a morte se tocam, em que a verdade e a ilusão se misturam. Submete-se. Godoy trata-a como uma criada de servir.
É Fernando, envelhecido na crápula, obtuso e concentrado, odiando o próprio pai, e conseguindo abrir a estúpida boca com sono, perante o formidável drama que se desencadeia na Europa. É enfim o valido, que, por ser esbelto e tocar guitarra como um bandido de Astorga, conquistara um trono. Godoy, que iniciara o seu reinado com estrépito, engorda e parece um cocheiro sebáceo. Há um quadro no Prado que aclara todo o drama confuso: as tintas conservaram e exprimem os sentimentos, os rancores, a am¬bição, o ódio, as vergonhas e o indeciso e o falso dos caracteres: es¬tá ali vivo o que há muito se sumiu para sempre na eternidade. Basta vê-lo ao rei, pachorrento e gordo, de olhos à flor do rosto, es¬tupidez e inocência, satisfação por que o retratem com a família toda — e o Manuel ao lado: compreende-se logo que o represen¬tante da sombria raça de crueldade e loucura, nasceu para ser o ludíbrio da mulher e do aventureiro vulgar. É “o boi”, como lhe cha¬ma o embaixador francês em Madrid. Chega a desgraça e ele não entende nem a catástrofe nem o escárnio; num espanto, sem um ímpeto, obedece às ordens deste ou daquele, da rainha, de Godoy, do filho, dos generalões sem escrúpulos, de Napoleão, até ao fim enganado e iludido, obcecado por uma amizade cujas raízes se ti¬nham apoderado de todo o seu ser. Vale a pena encará-lo por mo¬mentos no cenário a negro que é a Espanha, rodeado de fidalgos, de intrigas, de tropas sobre tropas — multidões sôfregas que des¬cem os Pirenéus para lhe arrancarem o trono, de ódios, de gritos de vergonhas: num mar bravio depois: mortes, rapinas, almas sanguinárias à solta — e ele simples e terno, espantadiço e inalte¬rável: — Onde está o Manuel?» (RAUL BRANDÃO, El-Rei Junot, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2007)
14/04/09
IMAGENS DA GUERRA PENINSULAR - TEXTO 11 - 16 ABRIL 2009 FrenteOeste

Aguarela grisaille, Luís António Xavier: «La Veritable entrée des protecteurs en Lisbonne le 30 Novembre de 1807». Lisboa, MC. PIN. 284
Joaquim Moedas Duarte
Estava-se em 1807. Napoleão varria a Europa central com a política do ferro e do fogo. Nada parecia resistir. Mas faltava-lhe aniquilar a Inglaterra. Esta, acantonada na ilha e dominadora dos mares, não se dobrava e tinha em Portugal um ancoradouro fiel.
Dominada a Espanha, o reduto português parecia alvo fácil. Escrevinha-se em Fontainebleau o tratado que retalha Portugal: uma parte para a Espanha, a outra para a França. Em Novembro deste ano, um exército de 25 000 homens põe-se em marcha, atravessa a Espanha e irrompe pela Beira, sob o comando de Andoche Junot, general de Napoleão, que havia estado em Portugal, três anos antes, como embaixador. Tem como objectivos a chegada em triunfo a Lisboa e a prisão da família real portuguesa. Mas uma barreira formidável se lhe opõe: não de exércitos mas de tempestades torrenciais que inundam os poucos caminhos que por aqui havia e transformam a marcha do seu exército numa espantosa calamidade humana. Soldados – homens! – arrastam-se, devoram o que encontram, matam, saqueiam, sobrevivem na lama, no frio, no dilúvio. Raul Brandão, no livro El-Rei Junot, descreve com pinceladas impressionantes este drama que envolve invasores e invadidos.
Que fazem os chefes portugueses? Organizam a defesa? Uma testemunha da época diz que teriam bastado mil espingardas para deter Junot. Mas nem uma se lhe opôs. Ouro e pedras preciosas foram enviados em desespero para comprar a benevolência de Napoleão. De nada serviram. Diplomatas atormentados fingiam aos franceses que estavam contra os ingleses, imploravam aos ingleses que os defendessem dos franceses. Uma decisão é tomada, a conselho da Inglaterra: transferir a família real para o Brasil, então colónia portuguesa, garantindo a continuidade da soberania. Com o Regente D. João (futuro rei D. João VI), sua mãe D. Maria I e seus filhos, fogem cerca de 15 000 pessoas, a elite do país: nobres, clérigos, juízes, militares, comerciantes, políticos, e mais as respectivas mulheres, e os servos, os criados, as bagagens. Indiferentes ao desespero do povo, safavam a pele. Tudo o que navegava foi tomado de assalto por esta horda amedrontada que uma aberta de temporal amainado permitiu sair do Tejo, direcção do Brasil. Junot e os 1 500 homens que sobraram da marcha forçada falharam a captura real por uma tira de horas. Foi nos dias finais de Novembro de 1807.
13/04/09
Texto nº 29 (Jornal BADALADAS, 24 Abril 2009)
Pedro Fiéis
Talvez sejam tão antigos como a própria guerra, mas é geralmente aceite que na moderna concepção da palavra, o primeiro correspondente de guerra terá sido Henry Crabb Robinson, um inglês que em 1800 tinha viajado para o território da actual Alemanha, onde fez os estudos universitários e onde terá contactado com alguns dos maiores vultos da cultura do seu tempo, casos de Schiller e Goethe, entre outros.
O seu conhecimento do terreno e domínio da língua constituíram então factores cruciais para que o jornal londrino “The Times” o contratasse para escrever crónicas sobre a guerra que Napoleão conduzia e cujos sucessos sobressaltavam os seus ávidos leitores.
Esta primeira experiência não é muito profícua, quer porque os escritos não tinham grande mérito, quer pela sua irregularidade e por se basearem muito no ouvi dizer. As distâncias ainda eram nesta época uma barreira difícil de vencer, pelo que as novas sobre as batalhas chegavam muito depois de as mesmas terem ocorrido e novos acontecimentos as terem tornado redundantes.
De qualquer modo, o progressivamente maior envolvimento britânico na Península em finais de 1808 convence os responsáveis pelo “Times” da necessidade de ter alguém perto do cenário do conflito e com acesso aos meios navais que transportavam a normal correspondência do exército, encurtando deste modo as ditas distâncias.
O escolhido vai ser então Robinson, principalmente pela sua experiência anterior, embarcando para a Coruña onde chega no dia 28 de Julho de 1808, 5 dias depois de ter deixado Inglaterra. Assumindo agora também de forma mais séria o seu papel, mantém uma correspondência regular com o jornal, muito embora o que escrevia ainda se baseasse nos relatos dos soldados feridos que iam chegando.
O facto de não acompanhar de perto as tropas não lhe permitia seguir todos os acontecimentos. Apesar disso, as informações que fazia chegar eram preciosas, por anteriormente se ter de esperar que esses mesmos soldados escrevessem para casa nas raras pausas que eram concedidas, não contando com a demora do correio. Tudo isto muda a partir do dia 11 de Janeiro de 1809 com a chegada das tropas sob comando de sir John Moore, em retirada diante das tropas francesas desde Salamanca.
Como não tinham chegado os navios de transporte, Moore foi forçado a tomar posições defensivas e aguardar a sua chegada. O seu oponente, Soult, chegou pouco depois e no dia 15 lança os primeiros ataques. A este desenrolar dos acontecimentos assistiu este correspondente desde o primeiro momento, e nesse dia, ao regressar ao hotel, encontrou a sala de refeições vazia e nenhum oficial por perto.
Ao sair para a rua foi informado da aproximação do inimigo e, ao longe, já se conseguia ouvir o troar dos canhões. Robinson foi imediatamente para as alturas que rodeiam a cidade, embora ainda longe da acção, assistiu ao desenrolar da batalha, observando compatriotas seus a serem feridos e mesmo mortos, reportando ainda sobre os prisioneiros franceses que eram escoltados para a zona do porto.
Foram umas horas únicas e que não mais repetiu, dado que ainda no final do referido dia 15 embarca de volta a Inglaterra e não mais escreve sobre a guerra, até porque no “Times” não se lhe reconheceram grandes dotes para a escrita e como a campanha terminara após o embarque da tropa inglesa, não lhe fazem nova proposta de trabalho.
Notas Finais: Henry Crabb Robinson não mais vai escrever para jornais, preferindo dedicar-se à advocacia até ao final da sua vida. O general Moore morre devido a ferimentos sofridos durante a batalha, deixando campo aberto ao regresso triunfal de Wellesley.

10/04/09
IMAGENS DA GUERRA PENINSULAR - TEXTO IX - 2 ABRIL 2009 - FRENTE OESTE

NAPOLEÃO
José Travanca Rodrigues
Quando começa o novo século, todas as ambições lhe são possíveis. Tem, ao virar dessa página do tempo, 31 anos. Nascera em 1769, na Córsega, meio italiano, meio francês. Carreira militar meteórica – general em 1793 – participou activamente nas vicissitudes da grande revolução iniciada na França em 1789. A carreira de Napoleão acompanhou os espasmos políticos que dilaceraram a França nesses anos. Sagaz e maleável, sabendo colher as oportunidades, passou praticamente incólume a tempestade da Convenção (chegou a ser preso por amigo dos jacobinos, em 1794), soube adaptar-se em crescendo aos novos tempos, muito próprios afinal aos seus projectos. Dois anos bastaram para chegar à fama europeia: em 1796, consumadas as suas primeiras vitórias militares em terras italianas, proclamava: “Povos da Itália! O exército francês vem quebrar as vossas grilhetas. O povo francês é o amigo de todos os povos. Para nunca mais os tiranos que vos têm subjugado!”
São estas as tintas políticas de que se cobre o manto “libertador” de Napoleão, génio da guerra. Doravante, ele torna-se o pesadelo das velhas monarquias europeias. Naqueles reinos ainda absolutistas, socialmente de matriz feudal, Napoleão passa a ser visto como o portador temido da “desordem”, do “caos”, da “impiedade”, enfim. Personificação do Anti-Cristo.
Internamente, a carreira de Napoleão foi fulgurante. Em 1802, torna-se cônsul vitalício. Em 1804 é coroado imperador dos franceses, com a caução do Papa Pio VII. Depois das turbulências do processo revolucionário, a figura de Napoleão emergia como a de um tipo novo de líder político. Incorporando certos conceitos e ideias liberais, atraía largas franjas da burguesia e boa parte da aristocracia se lhe rendia. Muitas desconfianças se desvaneciam para quem via no imperador o instrumento da normalização e da afirmação da França no quadro europeu.
01/03/09
IMAGENS DA GUERRA PENINSULAR - IV 26 Fev 2009 - FRENTE OESTE

TEMPESTADE NO HORIZONTE
A execução de Luís XVI pelos revolucionários franceses em Janeiro de 1793 fez estremecer as monarquias da Europa, levando-as a reagir. Durante 25 anos, este continente vai ser varrido pela guerra: de um lado a França, mobilizada segundo o novo conceito de “nação em armas”, chefiada pelo maior cabo-de-guerra dos tempos modernos, Napoleão; do outro, as grandes monarquias – Áustria, Prússia, Rússia, Suécia… - lideradas pela Inglaterra.
As duas maiores nações da Europa vão defrontar-se ao longo de um processo de afirmação imperial: a Inglaterra procurando o domínio das rotas comerciais marítimas e das colónias produtoras de matéria-prima para as suas indústrias; a França querendo impor os ideais revolucionários contra os decadentes regimes absolutistas. Entre uma e outra não era possível a coexistência pacífica. Napoleão encara seriamente a hipótese de invadir a grande ilha britânica, o que o leva a aliar-se à Espanha, inimiga secular da Inglaterra e senhora de uma forte Armada. O confronto decisivo deu-se em Outubro de 1805, junto ao Cabo Trafalgar, onde a armada franco-espanhola foi completamente desbaratada pela frota inglesa comandada pelo Almirante Nelson.
A partir daqui o teatro de guerra passa para o solo europeu. Portugal era uma nação periférica e de pouca influência internacional mas o seu território, tanto no continente como no ultramar, ganhou uma importância estratégica decisiva na luta entre as grandes nações rivais. Portugal viu-se entalado entre a espada francesa que nos considerava um protectorado inglês, e a parede inglesa que invocava a velha aliança para fazer dos nossos territórios a base das suas operações militares. Sem exército organizado e com um príncipe regente – D. João - sem estatura política, Portugal fica reduzido a jogar o seu destino no volátil tabuleiro diplomático. Proclamando-se neutral, alia-se em segredo ora a um ora a outro dos blocos inimigos. Esgota o tesouro em pagamentos, indemnizações, acções de aliciamento. Tenta ganhar tempo, esperando que deus ou a sorte levem para bem longe a tempestade que carrega o horizonte.
J. Moedas Duarte
26/12/08
Texto 21 ( Jornal "BADALADAS", 14 / 11 / 2008 )
MANIFESTO DE DECLARAÇÃO DE GUERRA À FRANÇA
José NR Ermitão
No dia 1 de Maio de 1808, cerca de sete semanas depois da Corte se ter estabelecido no Rio de Janeiro, o Príncipe Regente assinou um Manifesto constituído pela exposição e justificação (perante as potências europeias, os portugueses e «a mais remota posteridade») da conduta política e diplomática de Portugal relativamente à França e por uma declaração formal de guerra a este país.
Com este Manifesto, a Coroa Portuguesa pretendia esclarecer «a pureza da sua conduta» e o princípio adoptado de «evitar uma inútil efusão de sangue dos seus povos». E demonstrar que, perante os acontecimentos revolucionários passados em França e perante Napoleão, «procurou sempre guardar a mais perfeita neutralidade».
A demonstração procede por via da exposição do historial das relações entre Portugal e a França, com a denúncia da permanente má fé do lado francês, indo até ao desrespeito do Tratado de 1804 pelo qual reconhecia a nossa neutralidade. Acusação de má fé extensiva à Espanha por ter feito «causa comum com a França».
Em contrapartida, o Manifesto refere a sinceridade do comportamento português e a exemplaridade das relações luso-britânicas, a disponibilidade do nosso tradicional aliado em compreender a nossa posição e em socorrer-nos nos momentos difíceis. De permeio vai tecendo críticas à incapacidade da Europa em perceber os desígnios expansionistas de Napoleão e em unir-se contra ele: «A Europa devia... prever que a sua escravidão desde Lisboa a Petersburgo estava decidida no Gabinete das Tulherias e que era preciso fazer causa comum para destruir o Colosso...».
O Manifesto descreve depois em pormenor quer as exigências e ameaças com que o governo napoleónico pressionou o nosso país para o fazer aderir ao Bloqueio Continental e declarar guerra à Inglaterra, quer as tentativas feitas pela Coroa no sentido de um acordo para manter a neutralidade – o que Napoleão recusa.
Perante a ameaça de invasão militar, a Coroa acaba por ceder às exigências francesas (fecho dos portos aos navios ingleses) na ideia de que «a França, tendo conseguido essencialmente tudo o que tinha pretendido, não teria lugar de exigir mais coisa alguma». Mas Napoleão, desrespeitando a boa fé portuguesa e violando todas as regras de conduta entre os governos, invade Portugal «sem nenhuma declaração preliminar (de guerra)». Para salvaguardar a sua integridade, a Família Real não teve outra alternativa senão passar ao Brasil.
No final, considerando o indigno procedimento do imperador francês, a «usurpação de Portugal e a assolação e saque que ali se pratica», a abolição de governo instituído e dos direitos da Coroa, a imposição de uma pesada contribuição a um país «que não opôs resistência alguma à entrada das tropas francesas e que por isso não podia considerar-se em estado de guerra» – o Príncipe Regente faz a seguinte declaração:
«S.A.R.[Sua Alteza Real] rompe toda a comunicação com a França;... e autoriza os seus vassalos a fazer a guerra por terra e mar aos vassalos do imperador dos franceses.
S.A.R declara nulos e de nenhum efeito todos os tratados que o imperador dos franceses o obrigou a assinar... pois ele os infringiu e nunca os respeitou.
S.A.R não deporá jamais as armas senão de acordo com o seu antigo e fiel aliado, S. M.[Sua Magestade] Britânica; (...)».
SIGNIFICADO DO MANIFESTO
Este Manifesto – um documento de auto justificação da posição de Portugal e um violento libelo acusatório contra a França – tem um significado importante: a Coroa Portuguesa define de forma clara, ao declarar a guerra à França, a sua situação no concerto das nações no quadro das lutas europeias, posicionando-se irreversivelmente ao lado da Inglaterra. Outra coisa não seria de esperar depois da Convenção secreta de Londres, do apoio dado pelo governo londrino à transferência da Corte portuguesa para o Brasil e da invasão e ocupação do país pelos franceses.
O Manifesto será seguido, a 10 de Junho, de um decreto declarando a guerra a Napoleão e autorizando o apresamento dos bens dos franceses; mas já antes, a 22 de Março, era ordenada a conquista da Guiana Francesa, a norte do Brasil, a efectuar com o apoio inglês.
16/05/08
Texto 8 (Jornal "BADALADAS", 09 / 05/ 2008 )
Manuela Catarino *
Na sequência da derrota das forças napoleónicas na Batalha do Douro (12 de Maio de 1809), prevendo nova invasão, as atenções de Sir Arthur Wellesley, concentraram-se em dois objectivos principais: garantir a segurança do embarque das forças britânicas, que se faria junto a Lisboa, e, por outro lado, delinear a sua defesa criando diversos pontos de bloqueio nos principais eixos de acesso à cidade.
As “poderosas linhas de alturas que se erguem na região de Torres Vedras”, bem como os estudos topográficos feitos por Neves Costa, suscitaram a Sir Arthur o Memorando de 21 pontos enviado para o Coronel Richard Fletcher onde apresentava, de forma pormenorizada, as obras a construir naquele espaço e que ficaram para sempre designadas por “Linhas de Torres Vedras”.
Durante um ano fizeram-se os trabalhos necessários, contando com cerca de cento e cinquenta mil camponeses, arregimentados na região, sob as ordens de dezoito oficiais e cento e cinquenta sargentos ingleses. No total, o custo da obra rondou as cem mil libras, preço bem inferior a qualquer outra semelhante, ainda que tenham sido construídas cinquenta milhas de fortificações, onde se destacavam cento e cinquenta e dois fortes com seiscentas peças de variado calibre.
A linha de redutos, mais próxima de Lisboa, destinava-se a proteger S. Julião da Barra, onde se efectuaria o embarque inglês, devidamente protegido por forças da retaguarda. A mais afastada principiava em Alhandra, junto ao rio Tejo, aproveitando as elevações do terreno, particularmente do Cabeço de Montachique, continuando depois em direcção a Arruda e Sobral de Monte Agraço, até se ligar aos fortes construídos junto à vila de Torres Vedras, onde se destacava o Forte de S.Vicente, prosseguindo com mais vinte e cinco redutos até à foz do rio Sizandro.
Estavam assim estrategicamente bloqueadas as entradas em Lisboa a qualquer força invasora que viesse do norte. E os franceses preparavam, de facto, nova invasão. O Marechal André Massena reuniu 65000 homens, contando ainda com apoio de forças espanholas, e iniciou a marcha em direcção à fronteira portuguesa. Por sua vez, Sir Arthur organizava as tropas anglo-lusas, em que se incorporavam 18000 ingleses e 14000 portugueses, preparando-se para enfrentar o inimigo, obrigando-o a “ atacar com as suas forças concentradas(…) permitindo assim que as populações evacuem cidades, vilas e aldeias (…)destruindo tudo no seu caminho.” Era a e estratégia de terra-queimada que obrigava a um êxodo das populações e à destruição de tudo quanto pudesse ser útil ao invasor, desde espaços construídos a alimentos e outras formas de subsistência…
É o próprio Massena que faz o reconhecimento das linhas, a que chega no dia 15 de Outubro, e não terá gostado de encontrar algo que nenhum dos relatórios enviados pelo seu estado-maior lhe dera a conhecer. Também não terá contado com a rebelião que se instala entre os seus Generais mais próximos, agravada com novos desaires na zona do Sobral, o número de doentes que aumentava entre os seus homens, o peso da derrota no Buçaco. Massena terá sentido os indícios de uma nova situação desvantajosa, e as suas indecisões terão aumentado com a perspectiva de enfrentar quatro longos meses de Inverno, com a fome que começaria a grassar entre os soldados.
A situação não era fácil para as tropas aliadas, conforme nos demonstram os preciosos informes deixados por Manuel Agostinho de Madeira Torres ao salientar a intensidade da chuva que se abateu sobre a vila nos dias 7 e 8 daquele mês de Outubro. Foram enormes as perdas em vinho e azeite nos celeiros públicos e privados, a destruição das casas e cartórios públicos, bem como o saque das igrejas da vila e termo a que se veio juntar uma epidemia tão mortífera que houve necessidade de ampliar o espaço de cemitério junto à Igreja de S. Miguel para dar digna sepultura a quantos a peste matava.
A ameaça manteve-se durante semanas, com as tropas francesas nas suas posições até meados do mês de Novembro. Ao alvorecer do dia 15 foi notada uma estranha imobilidade das sentinelas francesas. Um reconhecimento mais próximo revelou o que se passava – eram bonecos de palha! Aproveitando a escuridão da noite, Massena havia retirado …
Mais uma vez, a estrela de Napoleão sofria um forte abalo no seu pretendido fulgor!
* Professora
12/04/08
Texto 6 ( Jornal "BADALADAS", 11/04/2008 )
Graça Andrade Mira *
A 17 de Outubro de 1807 (dez dias antes da assinatura do Tratado de Fontainebleau), Napoleão ordenou ao general Andoche Junot que entrasse em Espanha com 25 000 homens, onde se lhe reuniriam as tropas espanholas para proceder à invasão de Portugal. A 19 de Novembro Junot cruza a fronteira, chegando a Castelo Branco em lastimáveis condições de abastecimento, pelo que saqueia a cidade e toda a Beira Baixa.
A notícia da presença dos franceses em Abrantes fez apressar o embarque da família real, com destino ao Brasil. Antes porém, D. João nomeou um Conselho de Regência composto por nove personalidades representativas da nobreza, clero e magistratura e mandou afixar editais nos quais aconselhava o povo a receber os franceses como amigos, para evitar represálias.
A 29 de Novembro, Junot é saudado em Sacavém por uma delegação (constituída por personalidades ligadas à Regência, à Academia das Ciências e à Maçonaria Portuguesa) que lhe pede protecção. No dia seguinte, Junot entra em Lisboa acompanhado por uma escolta militar da Guarda Real da Polícia.
É pois, sob o lema da “protecção” que as tropas napoleónicas e espanholas invadem Portugal, ultrajado pela “maligna influência inglesa”, no dizer de Junot e em pouco tempo, todo o país se encontrava ocupado por cerca de 50 000 soldados que se espalharam por toda a nação, confiscando, pilhando, roubando, matando e prendendo a seu bel-prazer.
Torres Vedras sofreu desde logo os incómodos do alojamento e de quase todo o peso das requisições para a subsistência das tropas estacionadas não só na então Vila (cerca de 3 mil homens), como em Mafra e Peniche. O trato moderado e parcimonioso do Brigadeiro Charlot (comandante das tropas francesas) contribuiu para que Torres Vedras pudesse ter negado qualquer obséquio público ao intruso governo francês e mantivesse os cultos religiosos, inclusive o Natal.
Durante a primeira invasão, as estruturas administrativas judiciais e fiscais do Estado absoluto não sofreram qualquer alteração. Este modelo de funcionamento colaboracionista generalizou-se a quase todas as instituições, de que não foi excepção a Igreja, a qual teve uma função primordial na criação de um clima popular mais ordeiro. O púlpito foi usado para serenar o povo.
Foi nesse estado geral de “afrancesamento das instituições” que o País viveu entre 30 de Novembro de 1807 e 1 de Fevereiro de 1808, data em que Junot extingue o Conselho de Regência e proclama oficialmente a destituição da Casa Real de Bragança, numa clara violação do Tratado de Fontainebleau.
A partir de então todos os decretos, cartas e alvarás passam a ser assinados em nome de «S. M. o Imperador dos Franceses, Rei de Itália e Protector da Confederação do Reno».
O exército português foi parcialmente dissolvido e transformado numa “Legião Lusitana”, que seguiu para Espanha e depois para França e outras partes da Europa a lutar por Napoleão.
Como consequência do imposto extraordinário de 100 milhões de francos, ordenado por Napoleão, Junot lança sobre o reino uma contribuição de 40 milhões de cruzados. À Junta do Comércio são cobrados 6 milhões. O ouro e a prata das igrejas começam a ser recolhidos. Da Comarca de Torres Vedras, “a dita prata e ouro, reduzida a dinheiro somava a enorme quantia de 35 000$600 rs”. Na chamada contribuição de guerra exigida à classe comercial, “coube a este Concelho a quantia de três contos de reis e à Comarca oito contos”.
As insurreições sucedem-se de Norte a Sul do país e a pedido da Junta do Porto, o general Artur Wellesley acorre em auxílio dos portugueses, vindo a travar a 17 de Agosto, com Delaborde, o combate da Roliça-Columbeira do qual saiu vencedor e no dia 21 a batalha do Vimeiro, perdida pelo próprio Junot.
Iniciaram-se então as negociações para a rendição dos Franceses e a sua saída de Portugal, cujos termos se fixaram na chamada Convenção de Sintra.
A este propósito refira-se que, faz parte do espólio do Museu Municipal Leonel Trindade o “Bufete da Maceira”, em que foi negociado o armistício que pôs fim à 1ª Invasão Francesa.
O local, ou locais de assinatura deste documento têm levantado alguma controvérsia, surgindo inclusive questões relativamente à sua denominação. No entanto, se pretendermos denominá-la pelos locais onde foi assinada, a exemplo de outros tratados similares, a denominação mais indicada seria a de Convenção de Torres Vedras/Lisboa, uma vez que, este documento foi o tema de uma reunião do Estado Maior inglês, em Torres Vedras, no dia 28 de Agosto de 1808, onde foi validado, saindo daqui o documento que foi assinado por Junot no dia 30 de Agosto, em Lisboa.
Em Setembro, os Franceses embarcavam com destino a França, levando consigo a maior parte da pilhagem que ainda hoje se pode encontrar em museus e bibliotecas francesas.
* Professora
Todos os artigos já publicados nesta rubrica podem ser lidos em:
http://linhasdetorres.blogspot.com/
12/03/08
Texto 4 (Jornal "BADALADAS", 14/03/2008)
José Travanca Rodrigues *
O projecto napoleónico de afirmação da França, no quadro de uma nova Europa era insustentável, pela dimensão geográfica da empresa e pela multiplicidade dos adversários que tinha de enfrentar.
Não podia deixar de contar com a resistência dos principais estados europeus, que metodicamente contra ele se coligaram. Apesar disso, entre 1802 e 1807, venceu e “confederou” retalhos de uma Alemanha ainda frágil e em busca de um ideal nacional; subordinou um Império Austro-Húngaro vasto mas militarmente frágil; hegemonizou as partículas de que se fazia a Itália, perdida em quezílias internas; atraiu a Espanha a uma aliança anti-britânica e acabou por humilhá-la de modo insuportável para o brio espanhol. Tudo isto era muito, mas Napoleão sabia que os seus propósitos não ficariam completos, se não resolvesse os velhos diferendos que opunham a França à Grã Bretanha.
Os Ingleses eram o “génio funesto” da França.
Nos anos que se seguiram à revolução de 1789, a Inglaterra interviera nas sucessivas coligações anti-francesas. Os antagonismos entre as duas potências não eram problema apenas do espaço europeu. Havia entre elas uma longa querela pela partilha dos crescentes mercados coloniais. Em meados do século XVIII, a chamada Guerra dos 7 Anos (1756/1763) provara já que, só pela força, se dirimiriam os apetites dos contendores. Um breve parêntesis: o resultado de então foi premonitório - a Grã Bretanha passaria a ser a sede de uma nova “economia - mundo”, lugar que deixaria de ocupar apenas no dealbar do século XX, quando o eixo passou o Atlântico, para se fixar nos E.U.A..
Era no mar que Napoleão sabia que o seu inimigo irredutível teria de ser enfrentado, gorada a expectativa, ainda pensada, de uma invasão terrestre. Os resultados do confronto foram, desde logo, funestos para a França. Em Aboukir (1795), ao largo do Egipto, primeiro, e depois no cabo de Trafalgar (1805), não longe da costa algarvia, os Ingleses mostraram sobejamente de que lado estava a supremacia. (Porque será que a praça central de Londres se chama “Trafalgar Square” e no seu centro se ergue a estátua do almirante Horácio Nelson?). Era insuportável para os desígnios britânicos a limitação do seu acesso aos principais portos europeus. Para contrariar as aspirações francesas, os governos britânicos apoiam financeiramente os inimigos de França, sem terem se expor demasiado no plano propriamente militar – é a política resumida na frase: “poucas tropas mas muito dinheiro”.
Liberal, parlamentar e já dotada de uma economia estruturalmente capitalista, a monarquia inglesa teme a França napoleónica, mas espera a sua hora de plena acção. Parece entender que, por maior que seja o brilho das vitórias militares de Napoleão no continente, o ajuste de contas final terá de ser com ela. Reparando bem, a vitória maior de Napoleão terá sido a obtida em Austerlitz, em 1805; ora nesse mesmo ano, os Franceses sabiam já o que os esperaria do lado britânico, pois esse é também o ano de Trafalgar.
Em suma, a luta final teria de obrigar Napoleão a vergar a Grã-Bretanha por outros meios.
Meios que conduziram à intervenção napoleónica na Península Ibérica e às Invasões, cujo bicentenário nestes anos se rememoram. Aqui começaria a empalidecer o brilho, afinal efémero, do prodígio francês.
Nota:
Este é já o 4º texto, aqui publicado, sobre o Bicentenário das Invasões Francesas. Tal como no princípio anunciámos (25/01/2008), prosseguiremos ao ritmo de dois artigos por mês. Para os leitores que queiram rever estes textos, e ter acesso a mais informações, foi criado na Internet o blogue LINHAS DE TORRES que pode ser acedido com este endereço:
http://linhasdetorres.blogspot.com/
06/03/08
Texto 3 ( Jornal "BADALADAS", 29 / 02 / 2008)
José Travanca Rodrigues *
Um grande destino começa, um grande destino acaba (Corneille)
Chateaubriand nas suas “memórias”, reflectindo sobre a cena internacional de que foi testemunha activa, diz que no fim do século XVIII, “o mundo assiste a uma mudança profunda: o homem do século que expirava sai de cena; o homem do novo século a ela sobe; Washington, no fim da sua vida, cede o lugar a Napoleão”.
São dois “prodígios” que personificam a mudança.
Washington, pioneiro e cabeça da revolução que conduziu um novo país à emancipação política, momento inaugural em que um território colonial se erguia e se construía como entidade independente. O ano libertador de 1776 merece aqui ser recordado e o triunfo da revolução consolidada em 1783, quando os Estados Unidos da América obtêm o seu reconhecimento, a Constituição, que modela o novo estado, são os feitos maiores da carreira do prodígio norte-americano.

Do lado de cá, na Europa, a França na mudança de século assistia à irrupção de outro prodígio – Napoleão Bonaparte.
Quando começa o novo século, todas as ambições lhe são possíveis. Tem, ao virar dessa página do tempo, 31 anos. Nascera em 1769, na Córsega, meio italiano, meio francês. Carreira militar meteórica – general em 1793 – participou activamente nas vicissitudes da grande revolução iniciada na França em 1789. A carreira de Napoleão acompanhou os espasmos políticos que dilaceraram a França nesses anos. Sagaz e maleável, sabendo colher as oportunidades, passou praticamente incólume a tempestade da Convenção (chegou a ser preso por amigo dos jacobinos em 1794), soube adaptar-se em crescendo aos novos tempos, muito próprios afinal aos seus projectos. Dois anos bastaram para chegar à fama europeia: em 1796, consumadas as suas primeiras vitória militares em terras italianas, proclamava: “Povos de Itália! O exército francês vem quebrar as vossas grilhetas. O povo francês é o amigo de todos os povos. Para nunca mais os tiranos que vos têm subjugado!” .
São destas as tintas políticas de um génio da guerra que se cobre o manto “libertador” de Napoleão. Doravante, ele torna-se o pesadelo das velhas monarquias europeias. Pela Europa, muitos vêem-no como a personificação do Anti-Cristo. Naqueles reinos ainda absolutistas, socialmente de matriz feudal, Napoleão passa a ser visto como o portador temido da “desordem”, do “caos”, da “impiedade”, enfim.
Internamente, a carreira de Napoleão foi fulgurante: o caminho para consumar o poder despótico percorreu-o em meia dúzia de anos. Em 1802, desembaraçado de aliados menores, torna-se cônsul vitalício, para em 1804, se glorificar imperador dos Franceses, no cenário conciliador de Notre Dame de Paris, com a caução do Papa Pio VII, testemunha conveniente do quadro que David imortalizou em pintura.
Depois das turbulências do processo revolucionário, a figura de Napoleão emergia como a de um tipo novo de líder político. Incorporando certos conceitos e ideias liberais, atraía largas franjas da burguesia e boa parte até da aristocracia se lhe rendia. Muitas desconfianças se desvaneciam para quem via no imperador o instrumento da normalização e da afirmação da França no quadro europeu.
* Professor
