01/04/10

BADALADAS - Texto 48 - 2 ABRIL 2010

NAPOLEÃO FAZ ESTREMECER A EUROPA




JOAQUIM MOEDAS DUARTE


Raul Brandão, no seu formidável livro EL-REI JUNOT, pinta em traço grosso e impressivo o drama da História europeia do início do século XIX, quando Napoleão e a nova classe político-militar que governava a França espalham o seu exército de 300 000 homens pelas nações que eles combatem e submetem e onde eles impõem e dispõem. Casas reais, mal afeitas aos novos tempos e às ideias revolucionárias – Liberdade, Igualdade, Fraternidade! – encolhem-se e resignam-se. Ou combatem com armas de outros tempos, tão ineficazes que chegam a ser ridículas.

A família real portuguesa escapou porque fugiu para o Brasil. Essa ideia não a tiveram os seus familiares espanhóis e Napoleão fez gato-sapato deles. Prendeu-os e pôs em seu lugar o seu irmão José, um novo-rico dos novos tempos.

Raul Brandão não tem piedade para com esta realeza timorata, com suas fraquezas e pecadilhos, enredada em casamentos de conveniência e adultérios mais ou menos secretos. Pois não diziam as más-línguas que a rainha Maria Luisa de Espanha se entendia demasiado com o ministro Manuel Godoy, amigo do rei Carlos, que o estimava mais do que ele merecia?

Raul Brandão usa fontes históricas fidedignas e os dados que expõe não são inventados. Mas não está interessado em escrever um tratado de História, com o rigor do aparato usual nesse tipo de livros, com notas, bibliografia exaustiva, citações, etc. Mais do que escrever História, ele interpreta a História. Talvez seja esse o segredo do seu fascínio.

Vamos ler:

«À primeira vista o drama de Espanha não passa de uma tragé¬dia burguesa: marido ultrajado, mulher, filho, amante — e rol da roupa suja. Como nas peças, basta pôr de pé as personagens para compreender o enredo. É uma mixórdia de assombro e de gro¬tesco: a ambição, a cólera, o sonho, as paixões, que avultam certas figuras, rebaixam-nos e apelintram-nos a eles. A gente sofre e passa. Só um consegue deter-nos; só ele conserva, amarfanhado e ton¬to, certa grandeza no ridículo. Eis as personagens:

É o pobre Carlos IV, feito manequim nas mãos da mulher, que o ludibria de acordo com o favorito; é Carlos IV, cego até comunicar ternura, e, apesar de tudo, inabalável na sua profunda confiança. Arrastam-no, mentem-lhe, perde tudo, mulher, trono, oiro, e já entre as mãos de Napoleão, sem coroa, sem reino, sem prestígio, ainda pergunta numa aflição: — O Manuel? Onde está o Manuel?

É a rainha, a impetuosa e lasciva Maria Luísa. Tem 50 anos. Até aí o tropel da vida, o sangue, a miragem, não a deixaram ver a rea¬lidade em todos os seus aspectos. Primeiro rebate da velhice, pri¬meiro sabor do sepulcro. Tantas horas perdidas... Pouco te resta já - e já rugas, a pele ressequida, os olhos apagados. É quando a mulher se apega com desespero — restos de colo, restos de cabelo - ao pó de um sonho extinto. Momento em que a vida e a morte se tocam, em que a verdade e a ilusão se misturam. Submete-se. Godoy trata-a como uma criada de servir.

É Fernando, envelhecido na crápula, obtuso e concentrado, odiando o próprio pai, e conseguindo abrir a estúpida boca com sono, perante o formidável drama que se desencadeia na Europa. É enfim o valido, que, por ser esbelto e tocar guitarra como um bandido de Astorga, conquistara um trono. Godoy, que iniciara o seu reinado com estrépito, engorda e parece um cocheiro sebáceo. Há um quadro no Prado que aclara todo o drama confuso: as tintas conservaram e exprimem os sentimentos, os rancores, a am¬bição, o ódio, as vergonhas e o indeciso e o falso dos caracteres: es¬tá ali vivo o que há muito se sumiu para sempre na eternidade. Basta vê-lo ao rei, pachorrento e gordo, de olhos à flor do rosto, es¬tupidez e inocência, satisfação por que o retratem com a família toda — e o Manuel ao lado: compreende-se logo que o represen¬tante da sombria raça de crueldade e loucura, nasceu para ser o ludíbrio da mulher e do aventureiro vulgar. É “o boi”, como lhe cha¬ma o embaixador francês em Madrid. Chega a desgraça e ele não entende nem a catástrofe nem o escárnio; num espanto, sem um ímpeto, obedece às ordens deste ou daquele, da rainha, de Godoy, do filho, dos generalões sem escrúpulos, de Napoleão, até ao fim enganado e iludido, obcecado por uma amizade cujas raízes se ti¬nham apoderado de todo o seu ser. Vale a pena encará-lo por mo¬mentos no cenário a negro que é a Espanha, rodeado de fidalgos, de intrigas, de tropas sobre tropas — multidões sôfregas que des¬cem os Pirenéus para lhe arrancarem o trono, de ódios, de gritos de vergonhas: num mar bravio depois: mortes, rapinas, almas sanguinárias à solta — e ele simples e terno, espantadiço e inalte¬rável: — Onde está o Manuel?» (RAUL BRANDÃO, El-Rei Junot, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2007)

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