26/12/08

Texto nº 22 ( Jornal "BADALADAS", 12 / 12 / 2008 )



A COMEMORAÇÃO DO PRIMEIRO CENTENÁRIO DA GUERRA PENINSULAR



Célia Reis *


As comemorações do primeiro centenário da Guerra Peninsular inscreveram-se num movimento memorativo que vinha já do século precedente e que procurava realçar a recordação dos grandes feitos, individuais ou colectivos, num percurso que se queria que conduzisse a uma tomada de posição patriótica.
Neste contexto progressivo, o momento vivido em 1908 acentuava a necessidade de uma tomada de posição unificadora, compreendida pelos organizadores das comemorações, dada a crise existente, que assumira maior expressão no Regicídio e na subida ao trono de D. Manuel II.
A iniciativa da comemoração da guerra peninsular iniciara-se na Revista Militar, para depois se alargar a uma dimensão maior, que acabou por se concretizar através de uma Comissão nomeada por portaria de Maio de 1908. Foi assim que, numa estratégia mais alargada, Torres Vedras e o Vimeiro foram dos primeiros palcos em que se comemoraram os actos relativos às invasões francesas.
No dia 21 de Agosto de 1908 passou um século da batalha do Vimeiro, facto marcante para o términus da invasão comandada por Junot. Nessa data chegaram a Torres Vedras, vindos de comboio, o rei D. Manuel II, seu tio, infante D. Afonso, o Presidente do Conselho e os Ministros da Guerra, dos Estrangeiros e das Obras Públicas, entre outros elementos políticos e militares. À sua espera estavam as autoridades civis, militares e religiosas locais, incluindo os administradores de Torres Vedras e Lourinhã.
Entre músicas que tocavam no coreto, o rei seguiu de automóvel a «grande velocidade», no meio de algumas censuras da oposição, porque não se deixou ver por quem o esperava, nem sequer pelas damas que estavam à janela.
No Vimeiro repetiu-se a recepção pelas autoridades, fazendo-se as apresentações num pavilhão aí montado. Depois foi inaugurado o monumento assinalando a batalha que aí tivera lugar cem anos antes, sendo o auto assinado na barraca aí armada, na mesma mesa onde, em 1808, se tinham firmado os preliminares da paz. Entre os vários discursos ouviu-se o rei, relembrando os grandiosos feitos pela independência portuguesa e recorrendo a Os Lusíadas para mostrar a sua vontade de ser «rei de tal gente» colocando-se sempre ao lado da mesma. Estavam também formados os representantes dos corpos militares que tinham tomado parte na batalha: Artilharia 4, Cavalaria 6, infantaria 12, 21 e 24.Rodevavam-nos muita população desejosa de ver o rei, que, agora, se aproximou dos populares, no meio de grande contentamento.
O regresso a Torres Vedras fez-se novamente de automóvel, levantando nuvens de pó que ia pousando sobre a comitiva.
Na vila, o almoço foi servido no Casino, na Rua Paiva de Andrade, ao som da música. Depois de novos discursos, o monarca, no meio de numerosa multidão, dirigiu-se à Câmara Municipal, onde ouviu a saudação do respectivo presidente, cónego António Francisco da Silva.
O passo seguinte foi a deslocação, a pé, à igreja da Graça, enquanto as músicas tocavam e a população continuava a encher as ruas. No templo recebeu os cumprimentos dos padres dos estabelecimentos do Barro e de Varatojo, das irmandades, etc.
Daqui partiu para os Cucos, para visitar as termas, regressando a Lisboa pouco depois das 16 horas, no comboio[1].
Posteriormente, as comemorações continuaram, relembrando outros actos relativos às invasões francesas. Assim sucedeu, por exemplo, no dia 15 de Setembro, em Lisboa, recordando a retirada das tropas de Junot com o lançamento da primeira pedra do monumento relativo a estes acontecimentos. O rei esteve igualmente presente.
Posteriormente, até 1914, assistiu-se a numerosos actos disseminados pelo país, nas terras que pretenderam associa-se aos eventos, assim como à inauguração de outros monumentos e à edição de medalhas, postais, gravuras, etc. Em 1910 distinguiram-se ainda a realização de duas exposições em Lisboa, uma bibliográfica (para a qual o rei também contribuiu com alguns livros da sua biblioteca) e outra histórica.
Saliente-se que, relativamente aos acontecimentos que tiveram lugar em Torres Vedras e no Vimeiro no dia 21 de Agosto de 1908, um torriense coevo organizou uma álbum com todos os elementos que recolheu, como fotografias, recortes de jornais, etc., o qual ofereceu à Câmara Municipal e se encontra na Biblioteca Municipal.

* Professora e investigadora de História Local

[1][1] Alguns dos elementos relativos a esta presença régia podem ser encontrados no Museu Leonel Trindade, em Torres Vedras.

SUPLEMENTO no jornal Badaladas



Em 28 de Novembro foi editado pelo Badaladas um Suplemento de 4 páginas, de que se reproduz a primeira, em fotografia. (Aguardamos a digitalização para reprodução mais fiel).


Transcrição:

A publicação deste Suplemento, da responsabilidade da Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, está integrada na evocação do Bicentenário das Invasões Francesas, a decorrer entre os anos de 2007 e 2010. Esta iniciativa, que se inscreve num dos objectivos centrais da ADDPCTV – dar a conhecer o património histórico de Torres Vedras – só é possível com a colaboração da Direcção e da Administração do jornal Badaladas, uma e outra bem cientes do papel imprescindível da imprensa regional na preservação da memória colectiva.
A DIRECÇÃO DA ADDPCTV



Tores Vedras e a Primeira Invasão (1807-1808)

(Venerando de Matos)

As tropas de Junot cruzaram a fronteira portuguesa em 19 de Novembro de 1807, entrando em Lisboa no dia 30, três dias depois da família real ter saído a caminho do Brasil.
Segundo Madeira Torres, “Torres Vedras (...) foi a primeira em participar da consternação e saudade (…) pela ausencia do nosso adorado Principe”.
No dia 6 de Dezembro os torrienses “foram constrangidos a franquear quarteis, e munições de bôcca para a tropa de mais de duas brigadas” comandadas pelo Brigadeiro Charlot até à chegada do General Loison, nos dias seguintes. “No dia 8 do mesmo mez adiantou-se para a Praça de Peniche o General de Brigada Thomiers com dois batalhões, e passados alguns dias retrocederam dois para Mafra, onde Loison estabeleceo ordinariamente o seu Quartel General”
Permaneceram em T. Vedras “ os dois Batalhões dos regimentos 12 e 15 de infantaria ligeira”, que eram compostos por cerca de tres mil homens, sob o comando do Brigadeiro Charlot.
“Nos primeiros dias padeceo esta Villa não só os gravissimos incommodos do alojamento, mas quasi todo o pêso das requisições para a inteira subsistencia da tropa”
A moderação do brigadeiro Charlot foi muito elogiada pelo ilustre pároco torriense, até porque “contribuio ella para nunca se interromperem as funcções do Culto, nem mesmo a do Natal, e para se fazerem com boa ordem, e até com esplendor”.
Com a proximidade da Primavera o mesmo brigadeiro aliviou a vila “d’algum pêzo de tropa, mandando destacar duas Companhias para a Lourinhã, e duas para o logar do Turcifal”.
Em finais de Maio “levantou-se o quartel do General Charlot”, partindo com o Batalhão do regimento 12 “para a frustrada expedição do Douro e Porto, commandado por Loison. Pelo mesmo tempo se transferio o Batalhão do Regimento 15 para Mafra, e veio para aqui um dos alojados na Praça de Peniche, de que era Commandante o Major Bertrand, o qual apenas se demorou um dia. Desde então ficou esta Villa alleviada de tropa effectiva; mas não deixou de ser frequentada, e incommodada por alguns destacamentos, pelo transito dos Officiaes do Estado Maior, e tambem de varios corpos do Exercito.”[1]
Até Junho de 1808 as revoltas contra o invasor foram esporádicas e localizadas, não se conhecendo nenhuma neste concelho.
A mais importante, nas proximidades de Torres Vedras, foi a revolta das Caldas da Rainha, iniciada em 27 de Janeiro de 1808 e rapidamente esmagada pelas divisões de Thomiers e Loison, tendo, para esse efeito, a divisão deste último atravessado Torres Vedras.
Foi a partir da Espanha que a revolta popular contra o invasor ganhou contornos de grande insurreição, iniciada no célebre “2 de Maio”, contaminando Portugal onde, a 4 de Junho, se registaram os primeiros motins que tiveram lugar em Chaves.
Segundo Madeira Torres: “principiaram a chegar” (a Torres Vedras) “ as noticias de que a expedição do general Loison se tinha malogrado, e que as provincias do Norte se davam as mãos para destruir o intruzo governo, e proclamar o nosso legitimo Soberano; soube-se depois, que este heroico enthusiasmo já chegava á Cidade de Leiria, e que bem depressa as outras Povoações da Extremadura, (…). Esperava-se com impaciencia a aproximação do exercito Nacional, auxiliado com o socorro que se dizia chegado d’Inglaterra, mas a demora, e a incerteza das noticias concorriam para a geral anciedade”.[2]
A 2 de Agosto Junot tomou conhecimentodo desembarque britânico em Lavos.
Rápidamente procurou reunir as suas tropas, então dispersas a tentar travar as revoltas populares que se espalhavam por várias regiões do país.
Loison, com uma divisão de 6000 homens no Alentejo, foi mandado retirar para Abrantes e daí avançar sobre Tomar.
Delaborde, por sua vez foi mandado de Lisboa a caminho da Batalha e Alcobaça. Uma parte destas forças, comandadas por Thomiers, atravessou Torres Vedras. Foram estas forças que se defrontaram com os ingleses na batalha da Roliça, em 17 de Agosto, ao mesmo tempo que os ingleses entravam em Alcobaça, cortando as comunicações entre Delaborde e Loison.
Mais uma vez Torres Vedras viveu estes acontecimentos à distância, sabendo-se “da batalha da Roliça (...) pelos que se retiravam feridos do Exército, e por alguns prisioneiros, que aqui vieram pernoitar, escoltados por uma patrulha commandada pelo Capitão Picton do Corpo da Polícia”.
Por sua vez, Delaborde aproveitou-se “da noite para largar de todo o campo”, e tomar “a estrada, que diante da quinta da Bogalheira se dirige a Runa, onde descançou poucas horas, prosseguindo a marcha pelo Caminho da Cabeça. Em quanto o Corpo principal seguia, não deixavam de passar pela Villa em toda a noite soldados dispersos, que eram outras tantas testemunhas evidentes da victoria dos nossos alliados: pedio ella sem duvida publicos applausos, porém houve a necessaria prudencia em suffocal-os, o que servio para livrar a Villa d’algum severo castigo”.[3]
Tomando conhecimento da Batalha da Roliça, Junot decide abandonar a capital, determinando “fazer a concentração de todas as suas forças em Torres Vedras”.[4]
Em Torres Vedras, quando“se pensava, que no seguinte dia 18 d’Agosto entraria o Exercito alliado (…), aconteceo ao contrario espalhar-se o susto, e perturbação, pela noticia de que vinha proximo todo o Exercito Francez”, sob o comando de Junot, “e que com rigorosas ordens se mandavam apromptar quarteis, viveres, e forragens. (…). Este General entrou com o seu Estado-Maior pelas tres horas da tarde do indicado dia 18, rodeado dos Generaes quasi todos, e de uma forte escolta de cavallaria, a qual se dividio, e occupou logo as entradas da Villa, não se permittindo a sahida d’alguem, sem guia ou passaporte do Commandante da Praça, (…). Sómente os Officiaes do Estado-Maior tiveram alojamentos, porque os dos corpos ficaram com os mesmos sobre os campos visinhos. Concorreram aqui muitos individuos não militares, uns por empregados, e unidos ao Exercito nas suas diversas repartições, e outros meramente por buscarem o seu abrigo, receosos de serem sacrificados ao seu furor nas pequenas povoações. Ainda que nos armazens existissem alguns sobrecellentes do antigo fornecimento, nada eram para supprir ás urgencias de um Exercito, que se computava em 20$000 sem contar os seus aggregados: por isso foram indispensaveis as requisições violentas para a entrega dos generos necessarios; as quaes para mais prompto effeito se faziam por pregões, ameaçando-se os habitantes que se subtrahissem, com as penas de morte, e do incendio das suas casas, que seriam examinadas”. [5]
Vindo de Rio Maior, atravessando a região com dificuldade, a coluna comandada por Thiébault chega a Torres Vedras no dia 20, embora de forma dispersa.
Nessa data estavam concentradas em Torres Vedras todas as forças sob comando de Junot, num total de 13 mil homens;
Às duas horas da tarde desse dia Junot, inicia a ofensiva, para tentar chegar ao lugar de desembarque das tropas inglesas, em Porto Novo. Ao anoitecer ordena que as suas tropas estacionem junto a Vila Facaia, para descansarem.
No início da madrugada do dia 21 reinicia-se o avanço das suas tropas ao encontro do exército inglês, no lugar do Vimeiro.
A Batalha do Vimeiro foi seguida à distância pela população de Torres Vedras: “pelas 9 horas da manhãa começou a ouvir-se o estrondo d’Artilharia: no primeiro tempo do combate vieram noticias agradaveis aos Francezes: mas não tardou muito, que lhes chegassem outras, com que se mostraram descontentes, (…); enfim correram os boatos d’uma derrota completa, que se viam verificados pelos estragos, e até depois pela propria confissão, dos que se recolhiam do campo. A tropa entrou de noite,” (em Torres Vedras) “ e buscou acampar-se, como antes de ir para a batalha. No dia seguinte viam-se companhias commandadas por um cabo d’esquadra (tal havia sido a carnagem na officialidade): e todo o grande trem d’Artilharia reduzido a tres carretas. Apezar de ser tão vizivel, e avultado o destroço, ainda Junot se occupava com a impostura de fazer illuminar a Villa em aplauso da victoria (…).”
Na manhã do dia 22 Junot chamou “ao seu quartel os Generaes, e lhe propoz pedir capitulação, o que foi adoptado (...)”.[6]
Ficou encarregue de negociar com os ingleses o general Kellerman, partindo para o quartel general do exercito inglês sob pretexto de conferenciar relativamente aos prisioneiros e aos feridos, mas com plenos poderes para propôr um armistício:“Emquanto Kellermann ia desempenhar-se de tão importante missão, as tropas francêsas abandonavam Torres Vedras”.[7]
Kellerman chegou ao Vimeiro por volta do meio-dia do dia 22.No acordo de suspensão de armas ficou decidido que o rio Sizandro formasse “a linha de demarcação entre os dois exércitos” e que Torres Vedras fosse território neutral.[8]
Após a assinatura deste primeiro acordo “o Exercito Inglez se adiantou para as alturas d’aquem Amial (fixando os Generaes os seus quarteis n’esse logar, e ainda mais no do Ramalhal), começou a ser innundada de gente annexa ao Exercito, recebida com vivissimo enthusiasmo, e prazer; e apezar da supposta neutralidade, houve sem demora [em Torres Vedras] sinceras e voluntarias demonstrações de contentamento pela victoria e communicação dos allidos. As auctoridades da Villa foram logo comprimentar os Generaes Inglezes, e de todas as visinhanças concorriam numerosos ranchos de pessoas, até do sexo feminino a observar o campo da batalha, o admiravel espectaculo do Comboio estacionado defronte do Porto Novo, e a brilhante linha e revista do Exercito alliado”.[9]
No dia 24 chegavam a Porto Novo as tropas de John Moore, fundeando no dia seguinte, desembarque que se fez com grande dificuldade, levando cinco dias, afogando-se muitos marinheiros e soldados.
Registando-se algumas divergências na execução do acordo entre as duas partes, temendo-se o reacender do conflito, deram-se ordens “ás tropas de Moore para irem ocupar Torres Vedras, emquanto que os restantes corpos, sob o commando de Wellesley, deixando sobre a sua esquerda a estrada do Ramalhal a Bucellas, iriam tornear a posição de cabeça de Montachique, e o corpo do general Bernardim Freire, avançaria para ir ocupar Mafra.
“De facto, o exercito inglês adiantou-se um pouco, indo estabelecer-se nos logares do Sarge, de Paul e Torres. As tropas portuguesas vieram estabelecer-se na Encarnação (Lobagueira)”.
O tratado final só foi assinado definitivamente a 30 de Agosto e “ratificado por Dalrymple no dia 31 no seu quartel general de Torres Vedras”. Foi este acordo que passou à história, erradamente, como “Convenção de Sintra”, “pois não foi tratada, nem assignada” nesta vila. “Foi comtudo de Cintra que, com a data de 1 de setembro, Dalrymple enviou ao seu governo uma carta com a copia da convenção (...)”, daí a confusão histórica.[10]
Finalmente, no dia 15 de Setembro, o exército de Junot deixou Portugal.
Um pouco por todo o reino festejou-se a restauração do reino. Em Torres Vedras “foram grandes as demonstrações d’alegria pela gloriosa restauração do Reino em 1808. Logo no mez de Setembro do dicto anno os seus habitantes a festejaram com muitos dias de luminarias, e em seguida a Camara fez celebrar uma solemne Festividade em acção de graças na Matriz de Sanctiago, com mais tres dias de luminarias, prestito pelas ruas com o seu Estandarte (que já dias antes se tinha arvorado nos Paços do Concelho) dando vivas a S.A.R. o Principe Regente”.[11]
Torres Vedras, apesar de carregar em poucos dias “o pêso de tres Exercitos (…) e apezar dos estragos causados nos fructos, que ainda se recolhiam, e estavam pendentes, tal é a fertilidade do terreno, e tal foi a particular abundancia d’aquelle anno”, conseguiu suprir “ao fornecimento da tropa”, sem “padeceram falta” os seus habitantes.[12]


NOTAS

[1]Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), pp.164 a 171
[2] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), p. 171
[3] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819, pp. 171-172
[4] Victoriano J. Cesar, Invasões Francesas em Portugal - 1ª parte (...) Roliça e Vimeiro, Lisboa 1904, pp. 112-113
[5] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), pp. 172-173
[6] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), p.174).
[7] Victoriano J.Cesar, Invasões Francesas em Portugal - 1ª parte (...) Roliça e Vimeiro, Lisboa 1904, p.139
[8] O documento do armistício do Vimeiro foi publicado por José Acúrsio das Neves, no tomo V da sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, pp.433 a 435 da reedição dessa obra pelas Edições Afrontamento,s/d
[9] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), pp.175-176
[10] Victoriano J.Cesar, Invasões Francesas em Portugal - 1ª parte (...) Roliça e Vimeiro, Lisboa 1904, pp.141 a 143
[11] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), nota (a) dos Editores, p. 177
[12] Manuel Agostinho Madeira Torres, Descripção Historica e Economica da Villa e Termo de Torres Vedras, 2ª edição anotada, 1862, (1º edição em 1819), pp.175-176


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CURIOSIDADES HSITÓRICAS RELACIONADOS COM AS GUERRAS NAPOLEÓNICAS.

(Pedro Fiéis)

O açúcar chegava ao mercado francês proveniente das suas colónias nas Caraíbas e na América do Sul. A importância crescente deste produto, nomeadamente na conservação dos alimentos que as tropas consumiam, ditaram o aumento da procura, mas o prolongado bloqueio marítimo por parte da Inglaterra fez com que fosse um bem escasso.
Havia que encontrar uma solução alternativa e esta estava nos trabalhos realizados no século XVIII por um alemão, Marggraf, que com um seu discípulo descobriu o processo que permitia a extracção do açúcar das beterrabas. Em 1811 Napoleão ordena então o cultivo de 80.000 hectares e incentiva a criação de escolas e fábricas para poder melhorar um processo que era caro e lento.
Os frutos desta iniciativa vieram logo no ano seguinte, atribuindo-se a Legião de Honra a Benjamin Delessert, pelos avanços técnicos que registou e que tornaram finalmente a produção viável. Em 1814 já existiam 40 fábricas em França, mas também em território da actual Bélgica, Áustria e Alemanha.
Com o fim do conflito veio também o declínio desta indústria, pois o açúcar de cana inundou novamente os mercados e a preço muito mais baixo

A varíola era em séculos passados uma epidemia terrível que todos os anos reclamavam milhares de vítimas e marcava para sempre os que lhe sobreviviam. Em desespero para se encontrar uma cura, vários foram os métodos utilizados, oriundos de todos os pontos do planeta, mas sem grandes resultados.
Até que apareceu Edward Jenner, um inglês, que na sua juventude tinha sido submetido a sangrias, purgativos e dietas muito estranhas como forma de combater a doença, a que se juntava uma inoculação na qual se utilizavam as pústulas de alguém infectado.
Convencido de que este não era o caminho a seguir, dedicou-se ao estudo da medicina e reparou que o gado tinha sintomas semelhantes que se contagiavam aos humanos, mas cujas lesões que provocavam desapareciam espontaneamente e traziam consigo a imunidade contra a varíola.
Durante 20 anos recolheu dados, até que em 1796 realizou a primeira experiência com sucesso absoluto. Apesar de tudo, muitos foram os entraves e preconceitos que teve de enfrentar. A ajuda acaba por vir do inimigo existente do outro lado do canal, já que Napoleão segue o seu processo e manda vacinar todo o exército, tornando-o imune, algo crucial para quem queria conquistar a Europa.
Jenner acaba por ter o reconhecimento merecido e em duas ocasiões diferentes (1802 e 1807) recebe prémios monetários do parlamento inglês. É um dos heróis do seu tempo.

Uma disputa gastronómica subsiste nos dias de hoje entre portugueses e espanhóis, referente à origem da “Perdiz à Alcântara”. Não me vou debruçar sobre o que dizem os espanhóis, pois faltam-lhes muitos factos concretos, que sobram no nosso caso.
Assim no Convento do Sacramento em Alcântara, como em muitos outros, existiam grandes receituários, onde estavam compilados anos de sabedoria gastronómica. Ávido dos tesouros que a Igreja possuía, o general Junot encarregou logo membros do seu staff de descobrirem o que de mais precioso existia, não descurando nada, nem mesmo as bibliotecas, onde se sabia estarem obras com incrustações de pedras preciosas.
Seja por esta via ou tendo sido ofertada pelos monges, o certo é que a sua esposa divulga muitas das receitas nos salões da capital francesa. Algumas alterações são depois introduzidas, para satisfazer o gosto francês e à marinada com vinho do Porto acrescentam-se trufas e paté de pato.


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CRONOLOGIA DA PRIMEIRA INVASÃO FRANCESA

(Pedro Fiéis)

1807:

Julho
9 – Tratado de Tilsit.
Setembro
15 – Junot chega a Bayonne para comandar o Primeiro Corpo de Observação da Gironda, futuro Armée du Portugal.
Outubro
22 – Convenção secreta assinada entre Portugal e Inglaterra.
27 – Tratado de Fontainebleau
Novembro
16 – A embocadura do Tejo é bloqueada por uma frota inglesa.
19 – Primeiras tropas francesas passam a fronteira em Segura.
27 – Embarque da família real no cais de Belém.
30 – Entrada de Junot em Lisboa
Dezembro
4 – Decreto de confisco dos bens dos ingleses e proibição de armas de fogo.
6 – Dois batalhões franceses chegam a Torres Vedras.
13 – O Porto é ocupado pelo general Taranco.
17 – Decreto de Berlim que confirma e agrava o Bloqueio Continental.
22 – São dissolvidos a maioria dos regimentos portugueses.

1808:

Janeiro
10 de Janeiro – A primeira família real europeia, a portuguesa, passa a linha do equador.
27 de Janeiro – Motim nas Caldas da Rainha.
Fevereiro
1 – Junot assume o título de Governador de Portugal.
9 – Fuzilamentos dos condenados das Caldas.
13 – Morre o Cardeal Patriarca de Lisboa.
Março
7– Chegada de D. João ao Rio de Janeiro.
19 – Motim de Aranjuez, prisão de Godoy.
23 – Joachim Murat entra em Madrid com 30.000 franceses.
Abril
14 – Napoleão em Bayonne.
22 – Ataque inglês ao Bergantim Gaivota.
26 – Deputação portuguesa é recebida por Napoleão.
Maio
1 – Erupção vulcânica em S. Jorge, Açores.
2 – Revolta de Madrid.
5 – Carlos IV e seu filho Fernando abdicam em favor de José Bonaparte, revolta geral em Espanha.
Junho
7 – Ballesta retira do Porto, primeira tentativa falhada de revolta.
16 – Revolta de Olhão, a primeira a aclamar o Príncipe Regente.
18 – Proclama-se no Porto a Junta Provisional de Supremo Governo.
17 – Loison sai de Almeida em direcção ao Porto.
21 – Patriotas forçam ao recuo dos franceses em Mesão Frio.
Julho
5 – Margaron reprime a revolta de Leiria.
22 – Rendição do Segundo Corpo da Gironda sob comando de Dupont em Bailén.
29 – Combates de Évora que terminam com a pilhagem dessa cidade por Loison.
Agosto
15 – Escaramuça de Brilos.
17 – Combates da Roliça.
19 – Junot chega a Torres Vedras.
21 – Batalha do Vimeiro.
22 – Preliminares do Armistício.
30 – Assinatura da Convenção, dita de Sintra, no palácio de Queluz.
Setembro
15 – Embarque das últimas tropas francesas em Lisboa.
25 – Junta de Aranjuez centraliza a revolta espanhola.
26 – Junta do Porto suspende actividade reconhecendo conselho de regência de Lisboa.
Outubro
8 – A guarnição francesa de Almeida embarca no Porto.
29 – Napoleão sai de Paris em direcção a Espanha.


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LIVROS





NAPOLEÃO E PORTUGAL
Nicole Gotteri
Ed. Teorema, Lisboa, 2006

A invasão de Portugal, em 1807, corresponde a um momento decisivo da guerra entre a França e a Inglaterra. A maioria dos livros que abordam este acontecimento incide sobretudo nas operações militares. Este livro, na tradição das grandes obras de história diplomática, procura compreendê-lo no contexto geopolítico da época. A autora, doutorada em História, é arquivista-paleógrafa, antigo membro da escola Francesa de Roma.




1808
Laurentino Gomes
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008
Sub.título: “Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”.
O autor, jornalista brasileiro e investigador, coligiu dados durante dez anos para fazer esta obra de divulgação histórica.





HISTÓRIA GERAL DA INVASÃO DOS FRANCESES EM PORTUGAL E DA RESTAURAÇÃO DESTE REINOJosé Acúrsio das Neves
Edições Afrontamento, Porto, 2008
Trata-se da reedição de uma obra clássica, que há muito estava esgotada, sobre a primeira invasão francesa, e cuja primeira edição data de 1810 /11.O autor, contemporâneo dos acontecimentos, era formado em Leis pela Universidade de Coimbra e exerceu funções de juiz nos Açores. Mais tarde ocupou cargos de gestão económica e foi de deputado, dedicando-se simultaneamente à investigação história.


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CARTA DE UM SOLDADO INGLÊS A WELLINGTON,
ESCRITA NO VIMEIRO EM 21 DE AGOSTO DE 2008

(Poema evocativo, Luís Filipe Rodrigues)


Bem sabemos como a raposa te quis devorar, como
esse Junot pensava entrincheirar-te entre o descampado
e as águas do Atlântico. Nenhum dos teus cavalos
te foi infiel, nem os soldados infantes ou artilheiros,
nem os paisanos, todos foram dique e seta
e canhoneira a suster a turba napoleónica. Enquanto
essa chusma galgava penhascos e ribeiros em solo português
sempre com o mesmo intento: destruir para intimidar,
sendo cada aldeia livrée aux flammes em sentença sumária,
tu, meu amado Duque, de fronte alteada e viseira pronta,
ao lançares o brado inicial ficávamos um só na mesma saga,
um nó na mesma dança.

Vim para visitar os sítios em que outrora juntos lutámos
por esta terra derradeira. De sabre em punho vi desbaratar
quem te viesse ao caminho e foram dezenas entre o planalto
e o vale. Eu tinha vinte anos e lembravas-me Ulisses
ou Alexandre, por combateres o bom combate como disse
Paulo em seu ocaso, por servires quem sempre te serviu,
este que reclina a cabeça e pede mais um pouco de lembrança.
As ruas do Vimeiro nesse tempo não eram ruas mas caminhos
para o mar. Esse mar aqui tão perto não era Egeu
mas Porto Novo de barcas prontas para nos livrar
do Loison, o touro desembolado que atacava cegamente
o povo simples e ordeiro.

A nosso lado o aldeão manejava tão habilmente a foice
e os trilhos do monte como a espada, perdendo-se
em benquerenças para nos salvar. Nessa manhã de vinte e um
não fosse ele estancar-me o sangue da perna com garrote
de serapilheira e dar-me a beber a água do seu pote
não estaria aqui hoje. Não fosse ele a carregar as munições,
a procurar cereal e víveres, a dizer aqui há uma fonte
por esse carreiro uma gruta onde descansar da tormenta
não estaria aqui a evocar tais escaramuças,
com os cavalos e os granadeiros franceses em fuga
antes do pôr do sol. Oxalá tua voz e as investidas de corcel
ainda possam abrir uma brecha em qualquer parte do mundo.

Vim para visitar o que outros antes visitaram, ouvir falar
das mesmas águas em que as fragatas e os navios de carga
caminharam e depois arfantes no porto de desembarque,
das encostas e vales onde as forças aliadas acamparam
e montaram guarda. Venho sem um nó na garganta,
o que escrevo não é por mim mas por seres um
guevara de antigamente. Por ti vou em frente
na dor e no combate, que o corpo sofrido há tanto
da memória destes sítios se desvaneceu.
O que escrevo é para imaginar ver-te aqui onde estou
atravessando a ponte do alcabrichel na Maceira
e sentir ainda a pele colada às casas do tempo em que

eu de carabina ao peito na linha da frente a um passo dos teus olhos
tão diferentes de olhos tantos meu general e tua guarda
no sopé do outeiro entre os arbustos do cabeço
atacando à queima-roupa recuando ripostando assestando
à esquerda e à direita os regimentos de Delaborde
a salvas de mosquete e disparos de sharpnell
foi uma manhã de fogo e pânico e manobras de artilharia
até os flancos dos franceses arquearem na encosta
de ambos os lados cada um à espera do mesmo final
mais mortos que vivos após a peleja que nunca tal se viu
de manhã e ao anoitecer, tu a subir o monte escarpado
com a arma e a vitória que era tua e nossa.

Isto dura há dois séculos, contigo sempre por companhia.
Foi a sorte que nos uniu nesta embrulhada. O que vejo agora
é chama bruxuleante, paisagem que esmorece ao lembrar
o desenlace cruel ao fim da tarde.
Isto dura há dois séculos. Sendo horas para o fim do guerrear.
Nada se perdeu dentro de mim. Nem um só verso,
nem a cinza no peito, nem o que sofri para chegar até aqui,
às sete da manhã dezoito mil desde a costa
e por todas as colinas sobranceiras, armados de carabinas
granadas e cavalaria, contra os catorze mil franceses
golfando poeira e ruína. Estou aqui a tempo e a destempo
para saudar teu nome e teu morrer em cada coração que morria.



FICHA TÉCNICA:

Coordenação de Joaquim Moedas Duarte

Colaboradores:
José N R Ermitão
Pedro Fiéis
Venerando de Matos

Organização gráfica:
José Pedro Sobreiro

Execução gráfica:
Carlos Ferreira

Texto 21 ( Jornal "BADALADAS", 14 / 11 / 2008 )



MANIFESTO DE DECLARAÇÃO DE GUERRA À FRANÇA

José NR Ermitão

No dia 1 de Maio de 1808, cerca de sete semanas depois da Corte se ter estabelecido no Rio de Janeiro, o Príncipe Regente assinou um Manifesto constituído pela exposição e justificação (perante as potências europeias, os portugueses e «a mais remota posteridade») da conduta política e diplomática de Portugal relativamente à França e por uma declaração formal de guerra a este país.
Com este Manifesto, a Coroa Portuguesa pretendia esclarecer «a pureza da sua conduta» e o princípio adoptado de «evitar uma inútil efusão de sangue dos seus povos». E demonstrar que, perante os acontecimentos revolucionários passados em França e perante Napoleão, «
procurou sempre guardar a mais perfeita neutralidade».
A demonstração procede por via da exposição do historial das relações entre Portugal e a França, com a denúncia da permanente má fé do lado francês, indo até ao desrespeito do Tratado de 1804 pelo qual reconhecia a nossa neutralidade. Acusação de má fé extensiva à Espanha por ter feito «causa comum com a França».
Em contrapartida, o Manifesto refere a sinceridade do comportamento português e a exemplaridade das relações luso-britânicas, a disponibilidade do nosso tradicional aliado em compreender a nossa posição e em socorrer-nos nos momentos difíceis. De permeio vai tecendo críticas à incapacidade da Europa em perceber os desígnios expansionistas de Napoleão e em unir-se contra ele:
«A Europa devia... prever que a sua escravidão desde Lisboa a Petersburgo estava decidida no Gabinete das Tulherias e que era preciso fazer causa comum para destruir o Colosso...».
O Manifesto descreve depois em pormenor quer as exigências e ameaças com que o governo napoleónico pressionou o nosso país para o fazer aderir ao Bloqueio Continental e declarar guerra à Inglaterra, quer as tentativas feitas pela Coroa no sentido de um acordo para manter a neutralidade – o que Napoleão recusa.
Perante a ameaça de invasão militar, a Coroa acaba por ceder às exigências francesas (fecho dos portos aos navios ingleses) na ideia de que «a França, tendo conseguido essencialmente tudo o que tinha pretendido, não teria lugar de exigir mais coisa alguma». Mas Napoleão, desrespeitando a boa fé portuguesa e violando todas as regras de conduta entre os governos, invade Portugal «sem nenhuma declaração preliminar (de guerra)». Para salvaguardar a sua integridade, a Família Real não teve outra alternativa senão passar ao Brasil.
No final, considerando o indigno procedimento do imperador francês, a «usurpação de Portugal e a assolação e saque que ali se pratica», a abolição de governo instituído e dos direitos da Coroa, a imposição de uma pesada contribuição a um país «que não opôs resistência alguma à entrada das tropas francesas e que por isso não podia considerar-se em estado de guerra» – o Príncipe Regente faz a seguinte declaração:
«S.A.R.[Sua Alteza Real] rompe toda a comunicação com a França;... e autoriza os seus vassalos a fazer a guerra por terra e mar aos vassalos do imperador dos franceses.
S.A.R declara nulos e de nenhum efeito todos os tratados que o imperador dos franceses o obrigou a assinar... pois ele os infringiu e nunca os respeitou.
S.A.R não deporá jamais as armas senão de acordo com o seu antigo e fiel aliado, S. M.[Sua Magestade] Britânica; (...)».

SIGNIFICADO DO MANIFESTO

Este Manifesto – um documento de auto justificação da posição de Portugal e um violento libelo acusatório contra a França – tem um significado importante: a Coroa Portuguesa define de forma clara, ao declarar a guerra à França, a sua situação no concerto das nações no quadro das lutas europeias, posicionando-se irreversivelmente ao lado da Inglaterra. Outra coisa não seria de esperar depois da Convenção secreta de Londres, do apoio dado pelo governo londrino à transferência da Corte portuguesa para o Brasil e da invasão e ocupação do país pelos franceses.
O Manifesto será seguido, a 10 de Junho, de um decreto declarando a guerra a Napoleão e autorizando o apresamento dos bens dos franceses; mas já antes, a 22 de Março, era ordenada a conquista da Guiana Francesa, a norte do Brasil, a efectuar com o apoio inglês.

24/10/08

Texto 20( Jornal "BADALADAS", 24 / 10 / 2008 )



A CONSPIRAÇÃO DO PORTO [ 2ª parte ]


João Flores Cunha



No artigo anterior vimos como o Comandante da 2ª Invasão Francesa, Gen. Soult, acalentava o sonho de vir a ser rei da Lusitânia Setentrional, sonho que não era partilhado por alguns dos seus oficiais, entre os quais estava o cor. Donnadieu. Estabeleceu-se então uma aliança táctica entre este oficial e algumas personalidades importantes do exército aliado. (Nota da Coordenação)

O coronel Donnadieu explica então ao capitão português João Viana os passos da revolta: a necessidade dos revoltosos na colaboração inicial do exército anglo-luso; a prisão de Soult; a retirada imediata para Espanha dos franceses; a proclamação contra o Imperador; a adesão dos generais Sant-Cyr e Victor;. a entrega ao general Moreau, exilado na América, do comando de todo o exército francês.
Viana decide contactar o exército aliado. Com o pretexto de ir buscar a família que diz saber refugiada a dezoito léguas do Porto, consegue um salvo-conduto que lhe permite atravessar as linhas. Dirige-se a Coimbra onde o brigadeiro António Marcelino da Vitória lhe dá um passaporte a fim de o “livrar da ferocidade das ordenanças” de forma a poder chegar a Tomar, onde Beresford o recebe. Contudo, este não se entusiasma com o relato e aconselha o português a regressar ao Porto e voltar com um emissário dos oficiais franceses, com o qual pudesse entender-se. No entanto, dá-lhe por assistente o tenente-coronel Douglas que o acompanha até ao quartel do coronel Trant nas margens do Vouga. Viana transmite a Donnadieu as ocorrências e os conjurados nomeiam o capitão Jacques Constantin d`Argenton do 18º de dragões como emissário. Viana e d`Argenton encontram Douglas perto de Ovar, que os leva até Beresford. Desta feita, o general inglês tem como sério o relato de d´Argenton, mas diz-se sem autoridade para tomar qualquer iniciativa, encaminhando-os para Arthur Welesley que, entretanto, tinha chegado a Lisboa e assumira o comando do exército, instalando o seu quartel-general no palácio do Calhariz.
Wellington, na sua correspondência, relata a entrevista tida com o capitão d` Argenton, nela vislumbrando que o exército francês se dividia em dois campos: um propunha-se combater Soult pondo em execução o projecto da revolta desde que os ingleses o auxiliassem; o outro, composto pelos amigos de Bonaparte, pretendia impedir que o marechal se proclamasse Rei de Portugal. Não se comprometendo, Wellesley diz precisar de tempo para consultar o seu governo, mas que isso não o impediria de marchar para o norte e em breve estar frente ao exército francês.
O capitão francês e João Viana têm uma segunda reunião com Wellington já em Coimbra. Quando regressa só, ao Porto, d`Argenton encontra casualmente um seu antigo comandante, o general Lefèbre, que diz dirigir-se para a divisão Mermet. D`Argenton aconselha-o a não o fazer pois seria preso pelas avançadas inglesas e, julgando-o um dos conjurados, põe-no ao corrente das suas actividades. Lefrèbre denuncia a conspiração a Soult. Este, já conhecedor da movimentação dos ingleses, não dá muita importância ao relato do general e limita-se a mandar prender d`Argenton.
Quarenta e quatro dias depois de entrar no Porto, os franceses abandonam a cidade.
Em Penafiel, onde bivacou, Soult mandou interrogar d`Argenton, que denuncia alguns camaradas e é condenado ao fuzilamento. O coronel Laffite comandante do seu regimento, receoso de novas denúncias, pois era um dos conjurados que não havia ainda sido denunciado, facilita-lhe a fuga. O capitão d`Argenton refugia-se no meio dos ingleses seguindo depois para Inglaterra. Daí, ou por ver-se abandonado pelos ingleses, ou por remorsos, passa para França. É capturado e julgado em Vincennes, indicando o nome do português João Ferreira Viana como conjurado. Ouve, novamente, a sentença da sua condenação à morte e, desta vez, é fuzilado em Grenelle.
Os coronéis Donnadieu e Laffite são mais felizes escapando ao pelotão de fuzilamento pois Fouché, o eterno conspirador, intercede por eles.
João Ferreira Viana é promovido de capitão de ordenanças a capitão de linha tendo sido colocado às ordens do brigadeiro Francisco Colman. Como a de muitos dos verdadeiros patriotas, a memória deste enigmático herói desfez-se no tempo. Ele próprio diz na sua “Relação dos serviços que a Sua Majestade Fidelíssima fez o capitão de infantaria de linha e ajudante de ordens do Govêrno das Armas do Porto. João Ferreira Viana”: “Pela minha parte tenho conservado tanta cautela, que jamais deixei penetrar o segredo desta importante obra; nem mesmo depois, sabendo que alguns escritores produziam a história das campanhas de Portugal, me atrevo a esclarecê-los e por isso ignorarão esta circunstância.”

22/10/08

BIBLIOGRAFIA DA GUERRA PENINSULAR




Desde ontem há um novo livro sobre as Linhas de Torres Vedras.

Lê-se no Prefácio, escrito pelo Prof. António Pedro Vicente, um dos maiores especialistas da História Guerra Peninsular e que foi o orientador do Mestrado:


«O estudo sobre as Linhas de Torres Vedras que André Melícias nos apresenta e que constitui a sua tese de Mestrado deve assinalar-se como uma investigação valiosa. Efectivamente, para além da escassez bibliográfica no âmbito da historiografia nacional relativa a esse monumento militar, o facto de em breve se comemorarem os dois séculos da sua construção mais enriquece a temática escolhida»



Ficha técnica:


As Linhas de Torres Vedras:construção e impactos locais, André Filipe Vítor Melícias, ed. conjunta de Câmara Municipal de Torres Vedras e Livrododia Editores, Torres Vedras, 2008.

18/10/08

NOVO LIVRO SOBRE AS LINHAS DE TORRES




As Linhas de Torres Vedras: Construção e Impactos Locais


Segunda-Feira, 20 Outubro 2008, 19 H.


Auditório do Edifício Paços do Concelho em Torres Vedras



As Linhas de Torres Vedras: Construção e Impactos Locais
é o título do livro da autoria de André Filipe Vítor Melícias que será lançado no próximo dia 20 de Outubro, pelas 19h00, no Auditório do Edifício dos Paços do Concelho.Este livro é uma co-edição da Câmara Municipal de Torres Vedras e da Livraria Livrododia.
O Memorando de Wellington para Fletcher, de 20 de Outubro de 1809, mandava reconhecer o terreno e fortificar os pontos mais convenientes e defensáveis, visando a construção de um conjunto de fortificações construídas secretamente, a partir do final de Outubro de 1809, que viria a chamar-se de Linhas de Torres Vedras.
A um ano do ducentésimo aniversário deste documento, é lançado o livro As Linhas de Torres Vedras: Construção e Impactos Locais, um estudo fundamental para a compreensão do pensamento estratégico-militar, assim como dos diferentes projectos de construção deste sistema defensivo, determinante na defesa de Portugal frente à terceira invasão..
No Edifício Paços do Concelho de Torres Vedras» Praça do Município, na Zona Histórica
[Tel.: 261 334 040/ 261 320 739. ]

Texto 19 ( Jornal "BADALADAS", 10 / 10 / 2008 )



A CONSPIRAÇÃO DO PORTO [ 1 ]

João Flores Cunha



Foram de grande violência os primeiros dias da Primavera de 1809 na cidade do Porto. Enquanto o exército do duque da Dalmácia, marechal Nicolas Soult, se aproximava da cidade, uma turba, incitada pelo sargento-mor Raimundo José Pinheiro, perseguia os suspeitos de afrancesados, a quem, aos gritos de jacobinos e traidores, acusavam de todas as desgraças que aconteciam no Reino, chacinando aqueles que encontravam, como aconteceu ao general Bernardim Freire, ao brigadeiro Luís de Oliveira e ao tenente-coronel João Cunha entre outros.
Na manhã do dia 29 de Março as divisões Merle, Mermet e Delaborde rompiam as defesas, compostas por quarenta e sete bastiões servidos por dois mil homens e duzentas bocas de fogo. A população, buscando refugio na margem sul do Douro, corria em pânico na direcção da ponte das barcas que ligava a Ribeira ao cais de Gaia. A cavalaria portuguesa debandava perseguida pelos dragões franceses, atropelando a mole humana que fugia. A confusão era enorme. A estreita ponte não suportou o peso da multidão. Quatro mil fugitivos encontraram a morte nas águas do Douro.
O marechal Soult, instalado no palácio das Carrancas, preocupava-se em normalizar a vida na cidade e em conquistar a confiança dos seus cidadãos mais importantes entre os quais se encontrava o capitão de ordenanças do partido do Porto João Ferreira Viana, filho de um abastado comerciante, feito prisioneiro aquando da conquista da cidade.
A ambição do duque da Dalmácia levara-o a sonhar que poderia vir a ser rei da Lusitânia Setentrional, uma das três regiões em que Portugal era dividido pelo tratado de Fontainebleau, região que compreendia o Douro, o Minho e Trás-os-Montes. Para isso, era necessário ter os “fazedores de opinião” do seu lado. O seu “marketing” político foi posto a funcionar e, passava pela romagem ao Senhor Jesus de Matosinhos, onde se “ajoelhou, benzeu-se e rezou e ofereceu uma lâmpada de prata e o compromisso de custear o óleo para que se mantivesse sempre acesa e dobrou a côngrua do padre e o ordenado do sacristão”, ao fazer-se vitoriar no teatro de S. João como Sua Majestade rei Nicolau I, à criação dum jornal, “O Diário do Porto”, em cujas páginas se noticiavam todos os seus passos e onde os protegidos lhe iam preparando o caminho.
O seu chefe do estado maior, general Ricard, após a noite do teatro de S. João, enviou uma nota ao governador militar do Porto, general Quesnel na qual se dizia que as populações deveriam prestar homenagem ao vencedor e que as instruções deveriam ser transmitidas aos outros comandantes que se encontravam aquartelados nas diversas cidades do Norte. A primeira deputação a ser recebida no paço das Carrancas, onde estavam presentes todos os generais do exército invasor, foi a de Braga, liderada pelo corregedor António Mesquita e composta por trinta e seis elementos. Seguiram-se as de Barcelos, Viana do Castelo, Ovar, Vila do Conde, Póvoa do Varzim e, por fim, a do Porto, chefiada pelo desembargador Almeida Correia, teve honras de beija-mão: “Cada um dos membros da deputação teve a honra de beijar a mão de S. Ex.ª” – (Diário do Porto, de 29 de Abril de 1809). O teor dos pedidos das deputações era praticamente o mesmo: os Braganças tinham abandonado o país, o trono de Portugal estava vago, era pois forçoso, para interesse do reino que Napoleão indicasse um rei para Portugal e, que melhor rei haveria do que o duque da Dalmácia?
Ora, se a ambição do marechal era chalaceada pela soldadesca em alegre estribilho cantado pelos bivaques - “Oh!Oh!Lá!Lá! Le roi Nicolas!” -, o mesmo não acontecia entre muitos oficiais que viam na atitude do seu comandante um despropósito.
Na casa do pai do capitão de ordenanças do Porto, João Viana, haviam-se aboletado diversos oficiais franceses, entre os quais o coronel Donnadieu do 47º de infantaria. Este oficial, que se atrasara na carreira por haver participado na conjura de Rennes, em 1802, ao lado dos generais Bernadotte e Moreau contra Bonaparte, não via com bons olhos a transformação da República em Império e os títulos de nobreza que os seus antigos camaradas iam adquirindo. Donnadieu reunia um grupo de descontentes e numa dessas reuniões pôs João Viana ao corrente dos seus projectos e convidou-o a ajudá-los, pois necessitavam de alguém de confiança que encetasse conversações com o comando em chefe do exército anglo-luso.
O capitão português, vendo nesta conjura oportunidade para o país mais rapidamente se livrar do jugo do invasor, adere à proposta do coronel Donnadieu.

Veremos no que consistia o plano da sedição e como terminou.

25/09/08

Texto 18 ( Jornal "BADALADAS", 26 / 09 / 2008 )



AS AGUADEIRAS DO EXÉRCITO FRANCÊS


Pedro Fiéis*

As cantinières (numa tradução livre – aguadeiras), eram mulheres francesas a quem os regimentos davam uma autorização para a venda de comida e bebida, para além daquilo que eram as rações atribuídas a cada soldado. Tinham como única obrigação a de serem casadas com soldados do dito regimento.
O termo Cantinière veio substituir as Blanchisseuses, que em 1793 poderiam ascender a 4 por batalhão e as Vivandières, cujo número era aprovado pelo comandante de divisão. Quando foi proclamado o Império (1804) já os dois últimos tinham caído em desuso e cada mulher usava uma medalha indicativa da sua posição e que lhes concedia o direito a serem tratadas nos hospitais militares em tempo de guerra.
A sua função primordial era a de vender álcool, geralmente brandy de várias qualidades, que guardavam nos seus cantis (tonnelet) pintados de azul, branco e vermelho e presos em bandoleira por uma correia de couro, onde estavam pendurados os copos de cobre ou latão, em que serviam a bebida. Também efectuavam outros serviços, como cozinhar, lavar e coser a roupa, recolher lenha para as fogueiras e água. Se a oportunidade se deparasse, visitavam as aldeias próximas com o propósito de se abastecerem de víveres e se o produto fosse roubado, melhor, assim só tinham lucro nesta actividade.
Claro que não menos importante era o facto de constituírem uma muito necessária companhia feminina durante os longos meses das campanhas. Um dos mais famosos generais napoleónicos, Lasalle, chegou a dedicar-lhes uma canção nas vésperas da batalha de Marengo. Mas se por acaso se tornassem demasiado desordeiras, uma ordem do dia permitiria que os soldados pudessem pilhar os seus bens.
Muitas serviam até 30 anos no exército e se o respectivo marido fosse morto em combate, casavam com outro soldado para poderem manter a posição. Sobreviviam do salário do homem e dos ganhos com as vendas, mas os preços que podiam praticar eram obrigatoriamente baixos, sob pena de confiscação dos bens e não podiam vender a civis ou membros de outro regimento.
Não deixavam, elas próprias, de serem civis no exército e não tendo direito a uniforme, o garbo pessoal de cada mulher fazia com que envergassem uma mistura de vestidos de camponesa, com casacas militares e por vezes, o chamado bonet de police – o chapéu militar para ser usado nas folgas. Nas pilhagens, o que viesse para às mãos e servisse, era sempre bem-vindo.
Os filhos surgiam naturalmente, numa época em que não se conheciam contraceptivos, e na maioria das vezes acompanhavam as mães durante as campanhas. Existem relatos de mulheres que acompanharam os seus maridos no cativeiro, como foi o caso dos que foram aprisionados na ilha de Cabrera, em Espanha. Afinal, até na derrota sofriam as mesmas agruras, com os roubos, os ferimentos e as doenças, agravados pelas violações.
Apesar disso a sua coragem ficou demonstrada em diversos episódios, quando em plena batalha e a receberem fogo inimigo, corriam as fileiras dando de beber aos homens, carregando os mosquetes e não poucas vezes disparando-os. Ficaram-nos relatos de mulheres que chegaram a transportar os seus maridos feridos em grandes distâncias até chegarem a um hospital ou encontrarem uma ambulância.
Em 1807, na primeira invasão francesa, temos algumas a acompanharem os maridos na penosa marcha através de Espanha até à fronteira portuguesa e nesta altura era-lhes igualmente permitido trocar as mulas em que habitualmente viajavam, por carroças, compradas ou pilhadas, tanto fazia, integrando as outras carroças do regimento e estando sujeitas à autoridade do chefe da coluna.
Uma cantinière bem fornecida poderia ter consigo queijos, enchidos de várias espécies, salsichas, açúcar, tabaco, café, etc. Se possuísse para além disso uma tenda ampla, torná-la-ia no centro de recriação. Algo que na campanha referida só foi possível de efectuar já em Portugal, dada a falta de tudo na marcha até Lisboa.


* Professor e Investigador de História

Texto 17 ( Jornal "BADALADAS", 12 / 09 / 2008 )


AS DENÚNCIAS CONTRA OS PARTIDÁRIOS DOS FRANCESES

José NR Ermitão *

João Pinto de Carvalho (1858-1936) foi jornalista e autor de obras na área da olissipografia (estudos sobre Lisboa) e da etnografia. Em 1898/9 publicou “Lisboa d’outros tempos”, em 2 volumes, o 1.º intitulado Figuras e Cenas Antigas, o 2.º, Os Cafés – em que reúne artigos publicados em diversos jornais da época. Tinop (o seu pseudónimo) revela-se um vivo memorialista de factos, instituições e personagens das gerações anteriores à sua e com as quais ainda conviveu. Em 1903, publicou a “História do Fado”.
De Os Cafés transcrevo um texto que dá conta das denúncias e perseguições contra reais ou supostos partidários dos franceses em Lisboa, movimento que atravessou todo o país logo após a saída de Junot e incitada pelo próprio governo. E também um outro, de denúncia do oportunismo de alguns desses patriotas...

(As denúncias)

«Estas denúncias recebiam incitamento de um decreto que a regência fez publicar em 20 de Março de 1809, pelo qual autorizava a denúncia... de todos os sequazes dos franceses ou traidores à pátria, proibindo, todavia, o infamar qualquer pessoa com semelhante epíteto.
As denúncias choveram e quase se converteu em balda a acusação por espionagem e jacobinice. (...) Os comerciantes franceses... estavam naturalmente indicados como suspeitos. Mas não eram só eles. A lista dos portugueses e italianos marcados com o ferrete do jacobinismo era longa... (e cita pessoas das mais diversas profissões).
Indicavam mais como jacobinos, um marceneiro de S. Francisco, que fora muito de Lagarde (1) e em cuja casa estavam armas escondidas...; o Jacob Dorham, encarregado de negócios da Holanda, «que em todo o tempo tem sido o coriféu dos espias franceses»... (e continua a lista); o Cosmelli que, certa ocasião, estava a rir com um indivíduo por ter visto sair do Largo do Quintela o general inglês na sua carruagem, acompanhado de cinco guardas a cavalo. Indicavam também a casa da R. da Graça, 97, 1.º, em que se juntavam oficiais do 1.º batalhão nacional do paço da rainha... os quais todos faziam crítica, em verso e em prosa, dos actos governativos.
Muitos franceses, negociantes aqui estabelecidos, iam meter-se voluntariamente na cadeia para escapar às fúrias populares, como sucedeu ao livreiro Orcel. Outros viram as suas casas salteadas (sic) a pretexto de buscas, como aconteceu à de Jácome Ratton... em Alcochete.
Muitas dessas denúncias faziam-se por vingança, interesse cúpido, ou por despeito mal refreado.
Muitos foram expulsos do nosso país. Entre eles figuravam o barão de Serrabord... que usava de vários segredos de medicina; Henrique Solage, que fora mestre de música de diversos regimentos portugueses; Jacques Lebon, mestre de florete do príncipe regente... e Frederico Joly, guarda-livros dos Ratton.
A polícia tinha conhecimento de que havia ainda bastantes franceses escondidos. Em casa dos Ratton estavam dois que eram empregados em fabricar napoleões (2) no tempo do intruso governo.
Criaram-se então (1810) os bilhetes de residência. Dizia o intendente que este processo não devia chocar a nação, e parecia-lhe que lorde Wellington e o ministro britânico (embaixador) achariam justa uma medida que tendia a combater a trama do inimigo.»

(e o oportunismo)

«Passado um ano já havia alguns patriotas que se aproveitavam da estada de Massena em Santarém para ganharem dinheiro com os franceses. Os catraeiros (3) saíam de Lisboa com géneros que fingiam levar para os aliados. Escondiam-se nos esteiros e sinuosidades do Tejo e, pela madrugada, chegavam a Santarém, onde os vendiam por bom preço... Os moços de transporte das brigadas portuguesas também traficavam com o inimigo, atravessando para esse fim os postos avançados nos sítios mais próprios. E foi assim que o tenente-coronel Raimundo José Pinheiro conseguiu entrar naquela cidade, acompanhado de um desses moços, sob pretexto de vender chocolate.»

(1) General nomeado por Junot para responsável da polícia.
(2) Moeda francesa com a efígie de Napoleão.
(3) Tripulantes de catraias, pequenos barcos de proa dupla.


* Professor e Investigador de História

NOTA DA COORDENAÇÃO

As Invasões Francesas deixaram marcas duradoiras na sociedade portuguesa. É o que se evidencia no texto que hoje publicamos, o primeiro de outros que nos dão conta do modo como essas marcas se repercutiram no tempo.

19/08/08

Texto 16 ( Jornal "BADALADAS", 22 / 08 / 2008 )

A BATALHA DO VIMEIRO

PEDRO FIÉIS *






( Desenho do livro de João Pedro Tormenta e Pedro Fiéis )



Após a vitória na Roliça, Sir Arthur Wellesley recebe correspondência de Londres, que lhe dava conta do envio de novos reforços para as suas forças. A sua primeira prioridade passa então a ser a procura de um local adequado para o desembarque. Também soube da iminente chegada do general Burrard e do general Dalrymple, que o substituiriam no comando.

Os guias portugueses que trazia consigo e os conselhos oriundos da frota que o acompanhava ao largo, levam-no a optar pelo Porto Novo, uma baía feita pelo homem na foz do rio Alcabrichel, nunca acabada, mas que poderia fornecer alguma segurança num momento crítico para qualquer exército, como o é a protecção de um desembarque. O relevo em redor também facilitava a defesa, tendo Wellesley disposto a tropa desde a costa até à ponte de Maceira e ainda na colina sobranceira ao Vimeiro, que constituiria o seu flanco.

Entretanto em Torres Vedras, onde estabelecera o quartel-general e para onde ordenara a concentração de todas as forças francesas disponíveis (cerca de 14.000 homens), o general Junot toma conhecimento do desembarque que estava a ocorrer poucos quilómetros ao Norte e após reunião do conselho de guerra decide um ataque surpresa.

Embora tivesse assumido posições defensivas em redor da Vila, Junot sabia que estava por agora impedido de receber quaisquer reforços e por isso um ataque tinha de ser efectuado enquanto os números entre as duas forças estavam equilibrados. Às 4 horas da tarde do dia 20, os franceses começam a marcha, saindo de Torres pela estrada do Vale de Canas – Vila Facaia. Estrada em péssimo estado que dificulta e atrasa a marcha dos franceses.

As patrulhas inglesas é que aproveitaram este imenso ruído, intensificado pela passagem de uma velha ponte de madeira sobre o rio Alcabrichel, na zona de Paio Correia. Alertados, souberam exactamente qual a direcção do ataque, reportando isso mesmo para o general Wellesley, que modifica o seu dispositivo, reforçando a colina do Vimeiro e deslocando forças para o Alto da Ventosa.

Junot tinha consigo tropas bastante cansadas, e num movimento de última hora, decide-se a trocar a divisão Delaborde que avançava na sua direita, pela divisão Loison, que avançava em direcção ao Vimeiro. Ambas estavam bastante desgastadas por combates recentes, mais ainda a primeira que a 17 travara a Batalha da Roliça. Apesar disso não hesita.

Os generais Travot, Charlot e Tomières encabeçaram o ataque de três colunas em direcção à colina do Vimeiro. Solignac avançaria por Toledo em direcção à Ventosa, numa tentativa de contornar o dispositivo inglês e Brennier iria mais ainda pela ala direita seguindo pela estrada da Lourinhã até virar para Pregança.

Á sua frente, dispersa no terreno, estava a infantaria ligeira inglesa e os Riflemans, que os Voltigeurs franceses não conseguiram expulsar das suas posições. Só com a chegada das colunas é que retiraram. De súbito, no topo da colina surgiram as linhas inglesas que a uma distância de 20 passos dispararam um fogo mortal, coadjuvado pela chuva de balas proporcionada pelas granadas Shrapnel, acabando com este ataque em pouco mais de meia hora.

Desorganizadas, as colunas francesas fogem em pânico e Junot vendo o que estava a acontecer ordena o avanço de metade da reserva de granadeiros, as suas melhores unidades que, comandadas pelo coronel Saint-Claire, passam pela debandada do primeiro ataque e são fustigados pela artilharia inimiga. Sobem apesar disso a encosta, mas são recebidos por um fogo mortal dos regimentos nº 9, 50 e 97, formados em linha. Os granadeiros sofrem perdas enormes, num local ainda hoje conhecido como “Lagoa de Sangue” e param subitamente. Momento aproveitado pelos ingleses para carregaram. Com a moral já muito afectada, os franceses retiram.

O regimento 50 persegue-os até alguma distância e o general Kellerman, reparando que pode aproveitar esta brecha, ordena à restante reserva de granadeiros do coronel Marasin, um ataque nessa direcção. 1000 homens conseguem deste modo chegar a uma estrada desprotegida, já não existente nos dias de hoje e que conduzia directamente ao centro da aldeia do Vimeiro, junto à Igreja Matriz.

Inicialmente são coroados de sucesso. No entanto, Wellesley ordenara a Acland para colocar a sua recém desembarcada brigada em reserva na aldeia, com o objectivo de só a envolver nos combates em caso de extrema necessidade. Os franceses nada sabiam disto, pelo que foram surpreendidos por um devastador fogo de flanco. Na sua frente tinham ainda os homens de Anstruther protegidos pelo muro que rodeava a igreja.

Os granadeiros, fazendo jus à sua fama, investem corajosamente e inicia-se um sangrento combate à baioneta, mas como no seu avanço não foram acompanhados por outras forças, correm agora o perigo de se verem cercados. Kellerman e Marasin têm assim de retirar pelo mesmo caminho, já ladeado por Fane e Acland que conseguem aprisionar muitos inimigos. Todos os ataques ao Vimeiro haviam falhado e os franceses estavam nesta parte do campo de batalha em fuga.

Solignac neste meio-termo, já a ouvir o ruído da refrega próxima, consegue chegar perto da Ventosa, onde é igualmente recebido pelas linhas inglesas dos generais Ferguson, Nightingale e Bowes que impedem a sua progressão. Apanhado de surpresa, ferido na retirada, perde ainda toda a sua artilharia. Só a chegada de Brennier o salva, recuperando-se os prisioneiros e o material bélico.

Todas as forças francesas participantes na Batalha, derrotadas, estavam agora em fuga desorganizada de volta a Torres Vedras.

*Professor e investigador de História

Texto 15 ( Jornal "BADALADAS", 15 / 08 / 2008 )

DOUTRINAS MILITARES EM CONFRONTO NA GUERRA PENINSULAR:

OS INGLESES


Pedro Fiéis *


Do lado inglês temos uma perspectiva totalmente diferente, forjada principalmente à custa das duras lições apreendidas na Guerra de Independência dos E.U.A. e que perspectivam algo que entendemos como um exército moderno.
Por outras palavras, não existe um recrutamento obrigatório, mas sim o profissionalismo. Nas palavras de sir Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington, o pior da sociedade inglesa alistava-se, mas sob o enquadramento de um regimento operava-se uma enorme transformação. A vida militar era dura, mas oferecia alguns privilégios como o salário regular, mais os prémios por vitórias alcançadas, para além de os soldados poderem ter consigo as suas mulheres e de as primeiras escolas públicas terem surgido nos regimentos.


Um treino longo e rigoroso fazia destes homens uma máquina disciplinada, capaz de manobrar mesmo nas mais difíceis circunstâncias, algo que os franceses não faziam. Depois era igualmente dado um grande ênfase ao poder de fogo. A India Pattern, o mosquete mais utilizado na Península, tinha um calibre de 19.3mm, por oposição ao mosquete Charleville francês, com um calibre de 17.5mm.


A organização das tropas era em tudo semelhante à francesa, a diferença residia apenas no seu uso em batalha. Foi com as milícias dos E.U.A., que os ingleses aprenderam aquela que viria a ser a sua táctica mais bem sucedida durante toda a Guerra Peninsular, a da contra encosta. Ou seja, no topo das colinas colocavam apenas as unidades de infantaria ligeira, mantendo os restantes regimentos formados em linha protegidos na referida contra encosta.


No momento certo, estes homens colocavam-se no topo e disparavam 3 salvas em 1 minuto, mais do que suficientes para travar qualquer avanço. Compensavam deste modo a fraca precisão de tiro dos mosquetes, algo de que o Board of Ordnance (organismo que tutelava o fabrico das armas) tinha plena consciência quando encomendou a “Baker”, uma arma que veio introduzir o conceito de espingarda.


Ao seu menor tamanho aliava um cano estriado que lhe conferia a tão necessária precisão. A sua fama deve-se igualmente a novas unidades designadas por Riflemans, derivação de Rifle, que a utilizavam em exclusivo e que em batalha actuavam como os Voltigeurs franceses, mas com a vantagem de serem muito mais precisos nos seus tiros, conseguindo muitas vezes eliminar os oficiais inimigos.


A surpresa final reservada para os franceses, consistia numa nova munição utilizada pela artilharia, a granada Shrapnel, nome do seu inventor, que a criou para que a artilharia se pudesse defender da cavalaria, mas que em muito ultrapassou este propósito. Consistia numa esfera oca, cheia de pólvora e balas, na qual se introduzia um rastilho. A perícia do artilheiro em calcular distâncias era fundamental, pois tudo bem feito a bala explodiria ainda em voo com um efeito de cone. As colunas francesas, na batalha do Vimeiro, foram as primeiras a experimentar o seu terrível efeito.


Quanto aos abastecimentos, Wellesley dava-lhes a maior importância pois sabia, tal como Napoleão, que os homens necessitavam de uma boa alimentação para continuarem a lutar. A diferença residia no facto de o primeiro continuar a depender das linhas de comunicação para os obter, mantendo por isso oficiais do comissariado junto do seu Estado-maior e junto dos regimentos, para que nada faltasse.


Na Primeira Invasão, por exemplo, a esquadra fornecia os viveres, estabelecendo-se pontos onde eram criados depósitos que supriam as necessidades por 3 dias. A aquisição de outros bens junto da população, deveria ser paga no acto, sob penas severas em caso de incumprimento.

* Professor e Investigador de História

NOTA DA COORDENAÇÃO:

Este artigo completa o da passada semana, que se havia debruçado sobre a organização militar dos franceses.
Recordamos que estes escritos têm como objectivo divulgar conhecimentos sobre a Guerra Peninsular. Não são trabalhos de investigação ou de abordagem exaustiva dos temas. Os nossos leitores que quiserem aprofundar as questões tratadas poderão encontrar bibliografia abundante nas livrarias. No nosso blogue LINHAS DE TORRES procuramos divulgar a que vai sendo publicada e que chega ao nosso conhecimento.


03/08/08

VISITA GUIADA AOS CAMPOS DE BATALHA

Uma breve nota para esta actividade que decorreu no dia 19 de Julho p.p.
Trinta e cinco pessoas calcorrearam os caminhos da Roliça e do Vimeiro, com o excelente guia que é Pedro Fiéis, investigador de História, especialista da Guerra Peninsular.
Não havia sinais de guerra, claro. Mas lá estavam os lugares onde tantos homens se defrontaram até à morte. Paisagens de grande beleza que acentuam o absurdo do confronto armado. Só um grande silêncio de dorida memória pode erguer-se como tributo de homenagem a tantos heróis anónimos que regaram de sangue aqueles sítios.



Mapa da Batalha da Roliça

Mapa da Batalha do Vimeiro


Moinho de Brilos, Bairro de Nº Srª da Luz, (Óbidos). Terá sido aqui que se deu o primeiro confronto entre ingleses e franceses na Guerra Peninsular



Roliça. Zona do primeiro ataque inglês às posições francesas



O professor Pedro Fiéis explica

Alto do Picoto, na Columbeira, perto da Roliça. Segundo ataque às posições francesas


Memorial ao Coronel Lake, comandante do 29º regimento inglês, morto na batalha da Roliça. Edificado, anos mais tarde, por antigos companheiros de armas que re-visitaram o lugar da batalha. Ainda hoje lá está, no meio dos campos...



Monumento comemorativo da batalha do Vimeiro, erigido naquele lugar aquando do centenário, em 1908

Aspecto actual da casa onde foi assinado o primeiro documento do armistício, no Vimeiro, e que, depois de ratificado, ficou conhecido por Convenção de Sintra



Fotos (C) Vedra

BATALHA DO VIMEIRO

Folheto sobre as comemorações do Bicentenário da Batalha do Vimeiro, organizadas pelo Concelho da Lourinhã e pela Junta de Freguesia do Vimeiro:













Texto 14 ( Jornal "BADALADAS", 01 / 08 / 2008 )






DOUTRINAS MILITARES EM CONFRONTO

OS FRANCESES


Pedro Fiéis*



Durante a Guerra Peninsular, acima dos dois exércitos em confronto – o francês e o inglês - estão duas muito distintas doutrinas de guerra.
Em França, a derrota na Guerra dos Sete Anos vai provocar um forte abalo em todas as estruturas militares e levar ao aparecimento de grandes estrategas que vão revolucionar a forma de combater no século XIX.
Guibert defendia a ideia que nação hegemónica seria aquela que possuísse um exército de conscrição nacional, organizado em divisões autónomas, o que lhe garantiria a mobilidade. Boucert pega nesta ideia e vai mais longe defendendo que a dispersão seguida de uma rápida concentração surpreenderia o inimigo. Por sua vez, Gribevaul com os irmãos Du Teil, são fundamentais para o progresso registado na artilharia.
Napoleão Bonaparte pega em todas estas teorias, aprofunda-as e testa-as com sucesso nos mais diversos campos de batalha europeus. Mais do que divisões, ele criou os Corpos, que agrupavam várias divisões e que congregavam infantaria, cavalaria e artilharia.
Com várias frentes de batalha ao longo de sucessivos anos, Napoleão sabia que o treino que os recrutas recebiam era básico, mas desta limitação fez a sua força, dizendo mesmo aos seus generais que os mosquetes não eram a melhor arma do soldado, mas sim as suas botas.
Por outras palavras, a rapidez com que movimentava o exército surpreendia o inimigo. O facto de ter, por exemplo, 3 Corpos dispersos numa frente de 200 km, para dias depois os ter concentrados numa frente de apenas 50 km, confundia o seu opositor, garantindo-lhe superioridade no campo de batalha, num local que na maior parte das vezes era escolhido por ele.
As forças francesas organizavam-se do seguinte modo: a infantaria dividia-se em ligeira e pesada. A primeira era a mais móvel, capaz de actuar de forma dispersa, reagrupando-se rapidamente quando tal fosse necessário e englobava os Voltigeurs, atiradores de elite. A segunda era a infantaria de manobra, a espinha dorsal do exército. Num ataque napoleónico típico, uma cortina de Voltigeurs fustigava as linhas inimigas e protegia o avanço das colunas de infantaria, que ofereciam assim uma frente reduzida ao fogo contrário.
Para a cavalaria, que tradicionalmente era utilizada para reconhecimento e para dar a estocada final no inimigo, estava reservado agora um novo papel, o de romper com as linhas inimigas. Dividia-se para isso em pesada, com os Cuirassiers, por exemplo, que protegidos por couraças conseguiam ser devastadores em batalha. E a ligeira, Chasseurs à Cheval e Dragons, entre outros, os últimos também treinados para desmontar e lutar como infantaria.
Finalmente a artilharia, com o denominado sistema Gribevaul. Para além das pesadas armas de cerco, contava ainda com canhões de tiro directo e morteiros, para o tiro em arco capaz de ultrapassar obstáculos. Existiam ainda peças que dado o seu menor calibre seguiam a infantaria no seu avanço, em muito contribuindo para aumentar o poder de fogo.
A mobilidade não poderia no entanto ser atingida se o exército estivesse dependente das longas e lentas linhas de abastecimento. Por isso, cada Corpo dependia de si próprio para o respectivo abastecimento, papel que em marcha era normalmente atribuído à cavalaria. Para além disso os soldados recebiam treino específico no que concerne ao cultivo de cereais e ao fabrico do pão.
Estas características aqui resumidas explicam a superioridade militar francesa nos campos de batalha da Europa no início do século XIX.
* Professor, Investigador de História

29/07/08

Texto 13 ( Jornal "BADALADAS", 25 / 07 / 2008 )

Príncipe regente D. João (futuro rei D. João VI)



O príncipe regente D.João comunica a passagem da família real para o Brasil

JOSÉ NR ERMITÃO *

No dia 24 de Novembro de 1807, com o exército francês já próximo de Abrantes
e com o conhecimento do teor do Tratado de Fontainebleau – segundo o qual a
Casa de Bragança deixava de reinar e o país seria dividido em três partes – O
Conselho de Estado reúne e delibera «acelerar o embarque... da Real Família para
o Brasil». D. João, pelo decreto que se transcreve, comunica o facto ao país, nomeia
uma Junta Governativa, assina um conjunto de instruções (uma delas recomendando
que o exército francês seja bem recebido) e deseja felicidades aos
portugueses.
Do decreto são apresentados unicamente os trechos mais relevantes; parágrafos,
grafia e pontuação actualizadas.

REAL DECRETO DE 26 DE NOVEMBRO DE 1807

Tendo procurado por todos os meios possíveis conservar a neutralidade de que
até agora têm gozado os meus fiéis e amados vassalos, e apesar de ter exaurido o
meu real erário e de todos os mais sacrifícios a que me tenho sujeitado, chegando ao
excesso de fechar os portos dos meus reinos aos vassalos do meu antigo e leal aliado
o rei da Grã Bretanha, expondo o comércio dos meus vassalos à ruína e a sofrer por
este motivo grave prejuízo nos rendimentos da minha coroa, vejo que pelo interior do
meu reino marcham tropas do imperador dos franceses e rei de Itália, a quem eu me
tinha unido no continente na persuasão de não ser mais inquietado, e que as mesmas
se dirigem a esta capital.
Querendo eu evitar as funestas consequências que se podem seguir de uma
defesa que seria mais nociva que proveitosa, servindo só para derramar sangue em
prejuízo da humanidade e capaz de acender mais a dissenção de umas tropas que
têm transitado pelo reino com o anúncio e promessa de não cometerem a menor
hostilidade; e conhecendo igualmente que elas se dirigem contra a Minha Real
Pessoa, e que os meus leais vassalos serão menos inquietados ausentando-me eu
destes reinos, tenho resolvido, em benefício dos mesmos meus vassalos, passar com a
Rainha Minha Senhora e Mãe e com toda a Real Família para os estados da América
e estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até à paz geral.
E considerando mais quanto convém deixar o governo destes reinos naquela ordem
que cumpre ao bem deles e de meus povos, como coisa a que tão essencialmente
estou obrigado, tendo nisto todas as considerações que em tal caso me são
presentes, sou servido nomear para na minha ausência governarem e regerem estes
meus reinos (
seguem-se os governadores: marquês de Abrantes, Francisco Menezes,
Principal Castro, Melo Breyner, Francisco de Noronha e outros)...Tenho por certo
que meus reinos e povos serão governados e regidos por maneira que a minha consciência
seja desencarregada e eles, Governadores, cumpram inteiramente a sua
obrigação, enquanto Deus permitir que eu esteja ausente desta capital... na conformidade
das Instruções que serão com este decreto por mim assinadas.
(Local, data
e assinatura.)

(Seguem-se as Instruções, constituídas por generalidades sobre a administração
imparcial da Justiça, guarda dos privilégios concedidos, modo de tomada de decisões,
nomeação de pessoas adequadas para os cargos de letras, oficiais da justiça,
fazenda e exército; e pela instrução específica que se segue).

(Os governadores) Procurarão quanto for possível, conservar em paz este reino;
e que as tropas do imperador dos franceses e rei de Itália sejam bem aquarteladas e
assistidas de tudo o que lhes for preciso enquanto se detiverem neste reino, evitando
todo e qualquer insulto que se possa perpetrar e castigando-o rigorosamente quando
aconteça; conservando sempre a boa harmonia que se deve praticar com o exército
das nações com os quais nos achamos unidos no continente.
(...) Confio muito... que meus povos não sofrerão incómodo na minha ausência; e
que, permitindo Deus volte a estes meus reinos com brevidade, encontre todos
contentes e satisfeitos, reinando entre eles a boa ordem e tranquilidade que deve
haver entre vassalos que tão dignos se têm feito do meu paternal cuidado. Palácio de
Nossa Senhora da Ajuda em 26 de Novembro de 1807.
Com a assinatura do Príncipe
Regente.

* Professor
Nota da Coordenação:
Os textos que aqui vimos publicando não obedecem necessariamente
a uma ordem cronológica. Eles resultam da abordagem pessoal e da disponibilidade
dos nossos colaboradores, a partir da imensa bibliografia existente sobre a
Guerra Peninsular. São olhares parcelares e dispersos que, no final da série, em 2010, e
depois de ordenados por temas e datas, poderão constituir a base de um livro que ficará
como testemunho da nossa evocação histórica do Bicentenário das Invasões Francesas.