AS DENÚNCIAS CONTRA OS PARTIDÁRIOS DOS FRANCESES
José NR Ermitão *
João Pinto de Carvalho (1858-1936) foi jornalista e autor de obras na área da olissipografia (estudos sobre Lisboa) e da etnografia. Em 1898/9 publicou “Lisboa d’outros tempos”, em 2 volumes, o 1.º intitulado Figuras e Cenas Antigas, o 2.º, Os Cafés – em que reúne artigos publicados em diversos jornais da época. Tinop (o seu pseudónimo) revela-se um vivo memorialista de factos, instituições e personagens das gerações anteriores à sua e com as quais ainda conviveu. Em 1903, publicou a “História do Fado”.
De Os Cafés transcrevo um texto que dá conta das denúncias e perseguições contra reais ou supostos partidários dos franceses em Lisboa, movimento que atravessou todo o país logo após a saída de Junot e incitada pelo próprio governo. E também um outro, de denúncia do oportunismo de alguns desses patriotas...
(As denúncias)
«Estas denúncias recebiam incitamento de um decreto que a regência fez publicar em 20 de Março de 1809, pelo qual autorizava a denúncia... de todos os sequazes dos franceses ou traidores à pátria, proibindo, todavia, o infamar qualquer pessoa com semelhante epíteto.
As denúncias choveram e quase se converteu em balda a acusação por espionagem e jacobinice. (...) Os comerciantes franceses... estavam naturalmente indicados como suspeitos. Mas não eram só eles. A lista dos portugueses e italianos marcados com o ferrete do jacobinismo era longa... (e cita pessoas das mais diversas profissões).
Indicavam mais como jacobinos, um marceneiro de S. Francisco, que fora muito de Lagarde (1) e em cuja casa estavam armas escondidas...; o Jacob Dorham, encarregado de negócios da Holanda, «que em todo o tempo tem sido o coriféu dos espias franceses»... (e continua a lista); o Cosmelli que, certa ocasião, estava a rir com um indivíduo por ter visto sair do Largo do Quintela o general inglês na sua carruagem, acompanhado de cinco guardas a cavalo. Indicavam também a casa da R. da Graça, 97, 1.º, em que se juntavam oficiais do 1.º batalhão nacional do paço da rainha... os quais todos faziam crítica, em verso e em prosa, dos actos governativos.
Muitos franceses, negociantes aqui estabelecidos, iam meter-se voluntariamente na cadeia para escapar às fúrias populares, como sucedeu ao livreiro Orcel. Outros viram as suas casas salteadas (sic) a pretexto de buscas, como aconteceu à de Jácome Ratton... em Alcochete.
Muitas dessas denúncias faziam-se por vingança, interesse cúpido, ou por despeito mal refreado.
Muitos foram expulsos do nosso país. Entre eles figuravam o barão de Serrabord... que usava de vários segredos de medicina; Henrique Solage, que fora mestre de música de diversos regimentos portugueses; Jacques Lebon, mestre de florete do príncipe regente... e Frederico Joly, guarda-livros dos Ratton.
A polícia tinha conhecimento de que havia ainda bastantes franceses escondidos. Em casa dos Ratton estavam dois que eram empregados em fabricar napoleões (2) no tempo do intruso governo.
Criaram-se então (1810) os bilhetes de residência. Dizia o intendente que este processo não devia chocar a nação, e parecia-lhe que lorde Wellington e o ministro britânico (embaixador) achariam justa uma medida que tendia a combater a trama do inimigo.»
(e o oportunismo)
«Passado um ano já havia alguns patriotas que se aproveitavam da estada de Massena em Santarém para ganharem dinheiro com os franceses. Os catraeiros (3) saíam de Lisboa com géneros que fingiam levar para os aliados. Escondiam-se nos esteiros e sinuosidades do Tejo e, pela madrugada, chegavam a Santarém, onde os vendiam por bom preço... Os moços de transporte das brigadas portuguesas também traficavam com o inimigo, atravessando para esse fim os postos avançados nos sítios mais próprios. E foi assim que o tenente-coronel Raimundo José Pinheiro conseguiu entrar naquela cidade, acompanhado de um desses moços, sob pretexto de vender chocolate.»
(1) General nomeado por Junot para responsável da polícia.
(2) Moeda francesa com a efígie de Napoleão.
(3) Tripulantes de catraias, pequenos barcos de proa dupla.
* Professor e Investigador de História
NOTA DA COORDENAÇÃO
As Invasões Francesas deixaram marcas duradoiras na sociedade portuguesa. É o que se evidencia no texto que hoje publicamos, o primeiro de outros que nos dão conta do modo como essas marcas se repercutiram no tempo.
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