ALMEIDA E BUÇACO: NOTAS DE VIAGEM
Manuela Catarino
Ao despontar da manhã, o céu confirma as previsões meteorológicas e anuncia os primeiros dias radiosos de Maio. Abrem-se sorrisos na perspectiva de um início de viagem agradável, que se vai confirmando com o galgar da distância, estrada fora. Embaladas, pela cadência da condução segura, as pálpebras fecham-se, por momentos, esquecendo a paisagem que corre do outro lado do vidro. Quando se reabrem, na primeira paragem, a perspectiva de um rápido e energético cafezinho permite constatar que não foi um sonho: o sol brilha. Eis a primavera …
De regresso ao alcatrão, que a velocidade engole, vai-se sobrepondo a paisagem em mutação. A caminho de uma Beira interior, de feições bem marcadas pela pedra que se modela ao vento, às chuvas dos dias invernosos, e pela vegetação que vai ganhando coloridos primaveris, os olhos habituam-se a descobrir permanências e mudanças. Não se encontram grandes aglomerados populacionais e, de quando em vez, os pardieiros, ermos, em ruínas, pontuam o espaço outrora habitado. Nos céus, as asas de uma ave de rapina espraiam-se pelo azul sem nuvens. Sobre uma torre, aninham-se cegonhas. Manchas acastanhadas de bovinos jovens preguiçam por entre ervas que guardam os restos da fresca madrugada. Sucedem-se as placas de toponímia, e as peculiaridades de cada paisagem ressaltam no nome escolhido para designar o espaço em que se vive e as
águas que nele serpenteiam.
Sinal do progresso dos tempos, o viaduto transpõe distâncias e quase esconde a velha ponte. Uma paragem. Pelo caminho, ornado de vivos tons florísticos, despontam tufos de rosmaninho. Na ponte sobre o rio Côa, apenas se distinguem os murmúrios da água corrente. Poluída, é certo, mas longe do vermelho intenso que terá conhecido após os primeiros combates que ali ocorreram na terceira invasão francesa. Memória gravada em pedra, ali permanece em nome de sonhos, vidas, feitos militares, medos e perdas, que à escala humana não têm nação nem bandeira.
Recordados os episódios históricos, de novo à estrada, e “com alma até Almeida”!!!!!! A impressão que se tem quando se entra a porta de S. Francisco é esmagadora. A abóbada que se ergue sobre as cabeças dos transeuntes é sólida e transmite confiança, tanta quanto a necessidade de defesa contra os ataques dos invasores que teria de suportar. E, ao entrarmos no perímetro amuralhado e circularmos pelo antigo caminho de Ronda sentimo-nos atraídos pela magnífica paisagem envolvente, sem contudo podermos despegar os olhos daquela imensa conjugação de traveses, parapeitos, baluartes, revelins, trincheiras, guaritas, redutos e mais elementos necessários à arte militar que ainda ali se apresentam. Quase nos esquecemos que foi esta praça-forte a sentinela raiana que enfrentou invasões, exigindo-se-lhe o maior dos sacrifícios: deter por todo o tempo possível os exércitos de Massena, com ordens de entrar em Portugal e dominar Lisboa definitivamente. Só a violenta explosão, que no dia 26 de Agosto de 1810, deixou marcas indeléveis na memória, e nas pedras do castelo velho, acabou por lhe ditar a trágica rendição.
E o cair da tarde prenuncia-se nas sombras que se adensam. Altaneira, a cidade da Guarda, surge ante nossos olhos numa mistura de lenda e modernidade. É a serra que se impõe. Ares frios e secos, bons para um sono reparador.
Manhã soalheira e nós em direcção ao Buçaco. Imaginamos o calvário da marcha de milhares de homens a caminho da batalha. Há 200 anos eles passaram por aqui, por caminhos velhos e pedregosos, ravinas e outeiros, sempre a marchar, à fome e ao frio, sem saberem o seu destino. Mas o nosso autocarro é de turismo cultural, ironia tremenda da História. Queremos evocar, homenagear, reconhecer aqueles heróis. Apenas se fala de generais – Crowfurd, Wellesley, Massena, Ney, Reinier, Junot – mas o sangue que correu em 1810 era de milhares de anónimos, franceses obrigados a atacarem, portugueses e ingleses obrigados a defenderem. Ali está o Moinho de Moura, nas faldas do Buçaco, inscrição atestando ter sido ali o Posto de Comando de Massena.
Mais adiante o Moinho de Sula, posto de comando do inglês Crowfurd, que já se batera, semanas antes, na Ponte do Côa com a sua Divisão Ligeira. E a tradição do moleiro que teimou em subir para desfraldar as velas, pois para ele não havia feriados mesmo que fosse dia de batalha a sério. E chegamos ao Obelisco comemorativo da batalha. Dominando a paisagem, grito de pedra a lembrar aos viajantes o sofrimento inaudito de milhares de homens que ali morreram. O Museu Militar mostra fardas, armas, mapas, gravuras. Porque é preciso manter viva a memória.
Alonga-se a vista na panorâmica soberba da Cruz Alta. Fim, quase, de viagem. Início de uma descida ao coração verde da mata. Veredas, folhas, troncos, cenóbios desabitados. A comunhão com a mãe-natureza. Em nome de todos os deuses. Em memória de todos os homens.
Alonga-se a vista na panorâmica soberba da Cruz Alta. Fim, quase, de viagem. Início de uma descida ao coração verde da mata. Veredas, folhas, troncos, cenóbios desabitados. A comunhão com a mãe-natureza. Em nome de todos os deuses. Em memória de todos os homens.
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