30/05/08

Texto 9 ( Jornal "BADALADAS", 23 / 05 / 2008 )

Memória de Jacinto Correia, erguida já este ano no jardim fronteiro à porta de armas da Escola Prática de Infantaria de Mafra


JACINTO CORREIA, UM HERÓI POPULAR




Major Abílio Pires Lousada *


Fronteira de Segura - Beira Baixa, 20 de Novembro de 1807. À frente de um exército de 26500 homens, o general francês Andoche Junot invadiu Portugal para conquistar Portugal.
Lisboa, 30 de Novembro de 1807. Junot entra, com o seu exército, em Lisboa, instala-se no palácio do barão de Quintela e assume a governação de Portugal em nome do imperador Napoleão Bonaparte. Um exercício de poder que se revelará despótico e instigará as populações à revolta.

Lugar de Atouguia, Gorcinhos – Mafra, finais de Janeiro de 1808. Ao final da manhã, o jornaleiro Jacinto Correia, habitante da área, de 46 anos, casado e com filhos, dirige-se, como habitualmente, para casa com o produto do seu trabalho. No caminho, é abordado bruscamente por dois soldados franceses que o pretendem roubar. Jacinto Correia não teme e não cede, segue-se uma violenta luta entre os três homens. O jornaleiro saloio, homem de rija têmpera e habituado ao trabalho duro do campo, habilmente e com raiva, brande a foice roçadora que transporta e golpeia mortalmente os dois soldados que o atacaram.
Em pouco tempo, uma força militar francesa detém Jacinto Correia, que é presente a tribunal e julgado num Conselho de Guerra.
Apesar de algumas autoridades locais tentarem o perdão do jornaleiro, o Tribunal empurrou o processo para uma incriminação do réu, que impunha punir exemplarmente.
Em determinada altura do julgamento, porque o jornaleiro apresentava uma atitude de serenidade e desafio, foi-lhe perguntado por Loison, comandante militar francês da região, “se o arrependimento já tinha exercido algum efeito no seu espírito”. A resposta, tão convicta como desconcertante, “se todos os Portugueses fossem como eu, não ficaria um francês vivo”, enraiveceu Loison.
Jacinto Correia foi condenado à morte e fuzilado no campo da Alameda, no topo sul do Convento de Mafra, a 25 de Janeiro de 1808.
Tratou-se de um acto heróico, que correu célere de boca em boca. Junot, temendo que a atitude patriótica do «mafrense» estimulasse ânimos e ódios para provocações futuras, publicou uma semana depois a notícia da execução de Jacinto Correia:

«Um dos vossos compatriotas, Jacinto Correia, convencido de um grande crime, foi condenado á morte; Esta severidade das leis assegura a tranquilidade pública de que dependem as vossas vidas e propriedades»
Gazeta de Lisboa, 1 de Fevereiro de 1808

Notícia viciada e ameaçadora. Jacinto Correia «convencido de um grande crime»? Executou-se um homem de bem para tranquilizar as pessoas? Não se falou do pacato e honesto trabalhador, do cidadão de fé que auxiliava os frades do Convento ou do homem de família; ignorou-se copiosamente que se limitara a defender-se, a si e aos seus bens e, sobretudo, escondeu-se que Jacinto Correia desafiara o Tribunal e exortara os seus concidadãos a serem como ele: “(…) nem um só francês ficaria vivo”.
Era um acto isolado, Junot e Loison sabiam-no bem, e o incidente ocorrera em legítima defesa. Pouco importava, e tanto bastava para fazer dele um exemplo de intimidação para quem não colaborasse ou se opusesse ocupação napoleónica.
Era um acto isolado, pensaram Junot e Loison. Sê-lo-ia, mas por pouco tempo, o exemplo de Jacinto Correia ficou e faria «escola» junto do povo.


Há precisamente 200 anos, Jacinto Correia pagou com a vida o protesto lavrado contra a extorsão e as humilhações praticadas pelos franceses[1]. “Cruzes canhoto que vais para o maneta” – alcunha de Loison - , mediante tais processos de administração da ordem social mais valia morrer afrontando do que viver na humilhação. Assim, apesar das boas intenções «justiceiras» de Junot, Mafra e Jacinto Correia não constituíram um sopro abafado de revolta, tornaram-se num grito popular que, em uníssono, tornou num tormento a presença em Portugal dos soldados do Imperador.
A revolta popular de 1808 foi, em certa medida, a revivescência do tempo da Reconquista, quando nos povoados se gritava “Mouros em terra, mouros em terra, habitantes às armas”, da crise de Aljubarrota, em que o povo alertava “o Mestre está em perigo, o Mestre está em perigo”, do 1º de Dezembro de 1640, quando o frei Heitor Pinto proclamava “E-rei Filipe bem me pode meter em Castela, mas Castela em mim é impossível”.


Em 1808, um cidadão de Mafra clamou que “se todos fossem como eu, nem um francês ficava vivo”. É com gente desta qualidade, o povo, que a Pátria Portuguesa acontece. A verdade é que o gentio luso, que somos todos nós, vela atento, nós os Jacintos Correia de ontem e de sempre.


* Professor de História Militar do Instituto de Estudos Superiores Militares


Notas:

[1] São vários os autores que lembram a heroicidade de Jacinto Correia, dando testemunho da importância que o episódio constituiu à época, a que nem os ingleses foram alheios:
- Guilherme José Ferreira de Assunção, À sombra do Convento, Mafra, Rolo e Filhos, 3ª Edição, 1978, pp. 17-18; - - Raul Brandão, ob. cit., p. 153 e pp. 205-206;
- Mário Domingues, Junot em Portugal, Lisboa, Romano Torres, 1972, p. 336;
- Fernando Pereira Marques, Exército e Sociedade em Portugal, no Declínio do Antigo Regime e Advento do Liberalismo, Lisboa, A Regra do Jogo, Janeiro de 1981;
- Robert Southey, History of the Peninsular War, 3º vol., London, John Murray, 1823-1832, citado por Maria Leonor Machado de Sousa, A Guerra Peninsular em Portugal. Relatos Britânicos, Casal de Cambres, Caleidoscópio, Outubro de 2007.


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