O nome de Goya é indissociável da Guerra Peninsular. São dele os quadros sobre a insurreição de Madrid em 2 de Maio de 1808 contra a ocupação francesa, e - talvez o mais conhecido - o do fuzilamento dos insurrectos, em 3 de Maio.
Mas há um outro que nem sempre é lembrado e que constitui o reverso da realidade brutal dos quadros referidos, aquele em que retrata a família real espanhola. Onde vemos que gente era a que governava Espanha nas vésperas da Guerra Peninsular.
Transcrevo do site da GLOBO:
«"A família de Carlos IV" (1800) é um dos quadros mais conhecidos do pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes. O retrato dos governantes de Bourbon, que se mantinham altivamente distantes de seus súditos, mostra os modelos como de fato eram – enfatuados e pomposos.
O quadro impressiona pela beleza e cruel introvisão. Os membros da família real, com fisionomias apáticas, desdobram-se na tela como se estivessem num friso arquitetônico, pesados e presunçosos, ajuntando-se com pouca elegância e nenhum estilo. A imagem é de um rei fraco, de uma rainha irritável e rixenta, de um herdeiro crasso.
Em todos os retratos, Goya captura o que se passa com o modelo com tal intensidade que combina um senso decorativo aguçado para contrabalançar o impacto. Aqui, trajes deslumbrantes, sedas e rendados, delicadas jóias, medalhes e faixas garantem certo glamour à cena.»
A este propósito Raul Brandão, no seu EL-REI JUNOT, escreve estas páginas fulgurantes:
« É o pobre Carlos IV, feito manequim nas mãos da mulher, que o ludibria de acordo com o favorito; é Carlos IV, cego até comunicar ternura, e, apesar de tudo, inabalável na sua profunda confiança. Arrastam-no, mentem-lhe, perde tudo, mulher, trono, oiro, e já entre as mãos de Napoleão, sem coroa, sem reino, sem prestígio, ainda pergunta numa aflição: — O Manuel? onde está o Manuel? ( Trata-se de Manuel Godoy, o "príncipe da paz", que se tornara amante da rainha Maria Luisa. Toda a gente sabia menos o pobre coitado Carlos IV... - Nota do autor deste blogue)
É a rainha, a impetuosa e lasciva Maria Luísa. Tem 50 anos. Até aí o tropel da vida, o sangue, a miragem, não a deixaram ver a realidade em todos os seus aspectos. Primeiro rebate da velhice, primeiro sabor do sepulcro. Tantas horas perdidas... Pouco te resta já - e já rugas, a pele ressequida, os olhos apagados. É quando a mulher se apega com desespero — restos de colo, restos de cabelo - ao pó de um sonho extinto. Momento em que a vida e a morte se tocam, em que a verdade e a ilusão se misturam. Submete-se. Godoy trata-a como uma criada de servir.
É Fernando, envelhecido na crápula, obtuso e concentrado, odiando o próprio pai, e conseguindo abrir a estúpida boca com sono, perante o formidável drama que se desencadeia na Europa. É enfim o valido, que, por ser esbelto e tocar guitarra como um bandido de Astorga, conquistara um trono. Godoy, que iniciara o seu reinado com estrépito, engorda e parece um cocheiro sebáceo. Há um quadro no Prado que aclara todo o drama confuso: as tintas conservaram e exprimem os sentimentos, os rancores, a ambição, o ódio, as vergonhas e o indeciso e o falso dos caracteres: está ali vivo o que há muito se sumiu para sempre na eternidade. Basta vê-lo ao rei, pachorrento e gordo, de olhos à flor do rosto, estupidez e inocência, satisfação por que o retratem com a família toda — e o Manuel ao lado: compreende-se logo que o representante da sombria raça de crueldade e loucura, nasceu para ser o ludíbrio da mulher e do aventureiro vulgar. É o boi, como lhe chama o embaixador francês em Madrid. Chega a desgraça e ele não entende nem a catástrofe nem o escárnio; num espanto, sem um ímpeto, obedece às ordens deste ou daquele, da rainha, de Godoy, do filho, dos generalões sem escrúpulos, de Napoleão, até ao fim enganado e iludido, obcecado por uma amizade cujas raízes se tinham apoderado de todo o seu ser. Vale a pena encará-lo por mo¬mentos no cenário a negro que é a Espanha, rodeado de fidalgos, de intrigas, de tropas sobre tropas — multidões sôfregas que descem os Pirenéus para lhe arrancarem o trono, de ódios, de gritos de vergonhas: num mar bravio depois: mortes, rapinas, almas sanguinárias à solta — e ele simples e terno, espantadiço e inalterável: — Onde está o Manuel?
Já um criador de moda actual lê assim este quadro:
«Nesse extraordinário trabalho de Francisco de Goya, “A Família Real de Carlos IV”, de 1801, vemos a influência da silhueta império em outras cortes, como a espanhola. A figura central, mais iluminada que o rei é a rainha Maria Luísa de Parma que, junto com toda as outras figuras feminina do quadro, ostenta vestido da linha império. Podemos ver também o magnifíco contraste de cores, a leveza dos trajes femininos e a altivez dos masculinos, mas todos os adultos apresentam traços no rosto entre a alienação e a pasmaceira, incomum na composição pictórica de nobres e ainda mais dos supremos líderes de uma corte.
A genialidade de Goya como retratista faz com que mais do que vermos os brilhos dos brocados, dos bordados a ouro, das pedras preciosas, das pérolas, os sentíssemos reluzindo. O brilho ofusca as caras meio tolas e alienadas dos personagens principais que estão prestes a serem subjugados exatamente pela força que difundiu os vestidos império, a era napoleônica. É uma corte retratada em seu fim. Enfim, as mulheres já vestiam culturalmente o que depois seria político. De alguma forma, a moda antecipou os fatos.»
in: http://dusinfernus.wordpress.com/2009/08/17/goya-e-juliette-o-espanhol-e-a-francesa-e-a-brasileira/
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