05/08/10

BADALADAS - TEXTO 52 - 16 JULHO 2010






QUOTIDIANOS EM TEMPOS DE GUERRA
“ MALDITOS FIGOS!” MALDITOS FIGOS!”



Manuela Catarino


 “Em tempo de figos, não há amigos” glosa, de forma bem mordaz, o adagiário popular. Sabedoria notável que atravessa os tempos e a experiência das gerações. Gerada nas relações mais próximas do homem com a natureza, nela se repete quer nos tempos de paz quanto nos da guerra. Nesses tempos de perturbação a vida tenta seguir a espaços o seu curso. Por isso, entre cenários de morte e dor, há também pequenos apontamentos de riso, como os que nos deixaram alguns dos testemunhos que hoje aqui trazemos…
“ O senhor Elliot, irmão do general inglês que comandava a ala esquerda das posições do seu exército, desembarcado na véspera em Lisboa, tinha ido visitar o general ao amanhecer; tendo-se enganado no caminho directo, morrendo de calor e desejando refrescar-se, viu uma grande figueira e trepou para colher alguns figos. Estava a preparar-se para os comer quando um dos pequenos postos móveis o descobriu, marchou contra ele e lhe apontou armas; do meu posto de guarda avançada vi o movimento e, sem saber o que fazia com que todo um posto apontasse armas contra uma árvore, acorri e vi descer um jovem bem parecido que acabava de se render, tendo já entregado a carteira e o relógio aos soldados, exclamando em inglês: Dam figue!...Dam figue! E tinha razão, porque sem eles não teria corrido este perigo; bem podia dizer malditos figos. Apenas reclamou a bolsa do relógio, que continha cabelos da sua mãe; restituíram-lha. Conduzido perante o general Soult, depois ao senhor marechal, andou quatro dias a passear por ali e em seguida foi trocado. Jurou fervorosamente que nunca mais seria tentado por um figo.” (1)
É este mesmo jovem que vamos encontrar no aquartelamento do general Reynier, em Outubro de 1810, quando Pelet, ajudante de campo de Massena, aí se desloca em missão de serviço. Reunidos ao jantar, o aspecto do inglês impressiona francamente Pelet que acaba por tecer comparações entre a qualidade de vida dos oficiais ingleses e franceses. Sobre a referida personagem ficamos a conhecer mais alguns pormenores: este jovem de vinte e três anos é neto do General Elliot, Governador de Gibraltar; tinha chegado das Índias para se casar em Londres; desde que enriquecera e casara com uma bonita menina (cujo retrato mostrou) esperava deixar o cargo de tenente da marinha que  até então vinha desempenhando…(2)
Pensávamos que o nosso jovem não mais se cruzaria connosco. Mas eis que…
Um estafeta inglês, Percy, capturado através de um ardiloso estratagema, é levado para o Sobral “onde teve a curiosidade de subir ao sino para ver como estava organizado o nosso exército. Foi-lhe dada autorização e, deste ponto elevado, de luneta na mão, ele foi testemunha de uma cena engraçada, da qual não se pôde impedir de rir, apesar do seu infortúnio: a tomada de um outro oficial inglês.”(3)
A descrição assenta que nem uma luva ao tenente Elliot : “regressado das Índias, depois de vinte anos de ausência, tendo sabido em Londres que o irmão estava em Portugal sob as ordens do duque de Wellington, embarcou para Lisboa e daí, apressou-se a ir a pé até aos postos avançados […] Estava entre os dois exércitos quando, vendo uns magníficos figos, e não comendo ele há muito tempo fruta da Europa, veio-lhe o desejo de subir à figueira. Estava ele tranquilamente nesta consoada, quando os soldados de um posto francês situado perto dali, admirados de ver uma vestimenta vermelha em cima da árvore, se aproximaram […]” (4) e já conhecemos o desfecho!!!!
Não. Não será bem assim. Pois que “este inglês, mais sensato do que o senhor Percy, pediu aos seus captores que o mantivessem na raia do exército francês, cuja configuração interna não queria ver, na esperança de poder haver uma troca”(5). E, de facto, o jovem Elliot será trocado pelo capitão Letermillier, capturado em Coimbra…
E o senhor Percy?? Bom, ele que tinha assistido à captura do seu correligionário, de quem tanto se tinha rido, tentou obter o mesmo favor. Foi-lhe recusado pois ele conhecia bem demais o aquartelamento francês. Mantido prisioneiro, acompanha a retirada por terras de Espanha partilhando os infortúnios dos seus captores. Irá até França e aí viverá vários anos.
Caso para, à maneira de epílogo, comprovar a ironia da voz popular: “ Uns comem os figos…a outros rebenta-lhes a boca”.


(1)       Capitão Jean-Baptiste Lemonnier-Delafosse, “Recordações Militares” in Vários, Linhas de Torres Vedras. Memórias Francesas sobre a III Invasão, Livros Horizonte, 2010, p.68.
(2)       THE FRENCH CAMPAIGN IN PORTUGAL, 1810-1811 An Account by Jean Jacques Pelet, Edited, Annotated and Translated by Donald D. Horward, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1973, p. 273.
(3)       General Barão de Marbot, Memórias sobre a 3ª Invasão Francesa, ed. Caleidoscópio,Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006, pp.82-83.
(4)       Idem,pp.82-83.
(5)       Ibidem,p.83.