24/08/10

BADALADAS - Texto 54 - 13 AGOSTO 2010

TEMPO DE GUERRA
PORTUGUESES, ESPANHÓIS E INGLESES...

José NR Ermitão


          A Guerra Peninsular pôs em contacto frontal ingleses, portugueses e espanhóis, todos aliados num objectivo comum – a luta contra o domínio francês – mas com grandes diferenças entre eles quanto a relações humanas e mentalidades.
Assim, os portugueses e espanhóis nunca deixaram de mostrar o desafecto que sentiam uns pelos outros; por outro lado, os espanhóis e ingleses detestavam-se fortemente. Um dos pontos de fricção entre os ibéricos e os britânicos era a religião: os ingleses desprezavam o catolicismo como um conjunto de superstições e tolices, e os portu- gueses e espanhóis viam os britânicos como não cristãos.

          H. W. Maxwell publicou, em meados do século XIX, uma colectânea de narrativas de ingleses que participaram na Guerra Peninsular (1). Duas dessas narrativas dão conta dos sentimentos de hostilidade pessoal mútua entre os aliados. Uma delas, A night in the Peninsular War (Uma noite na Guerra Peninsular), refere aspectos da tensão existente entre os dois povos ibéricos: o facto de as suas disputas acabarem quase sempre em sangue e o facto de os condutores espanhóis de mulas servirem os regimentos ingleses mas recusarem-se a servir os militares portugueses.
Entretanto este vingavam-se, ou pondo-se sempre do lado dos ingleses quando havia altercações entre estes e os espanhóis, ou fazendo “visitas” predatórias nocturnas aos acampamentos dos arrieiros espanhóis – que tiveram de recorrer a cães de guarda e a tiros de mosquete para se defenderem dos portugueses... Estas tensões eram tão fortes que preocupavam os comandos militares pelos efeitos disciplinares negativos que originavam.

Outra narrativa, Recollections of the late war in Spain and Portugal (Lembranças da última guerra em Espanha e Portugal), anota a diferença de atitudes dos espanhóis e portugueses para com os ingleses – os primeiros, distantes e arrogantes; os segundos, cordiais e agradecidos – e descreve, com humor, o modo como os militares de um regimento inglês se transformaram em bons cristãos junto dos portugueses. Traduzo livremente:
“Descobrimos que ninguém no nosso exército era considerado como cristão excepto os militares que declaravam ser naturais da Irlanda (2), que eram logo tomados pelos portugueses com bons católicos romanos; tal declaração era em geral seguida de favores da parte deles; mas de vez em quando levantavam-se suspeitas e era necessário dar um testemunho prático da nossa sinceridade, benzendo-nos conforme o rito da igreja romana. Neste importante teste, os que realmente não eram católicos enganavam-se fazendo o sinal da cruz com a mão esquerda – um erro crasso que não só provocava decepção como era considerado um grosseiro acto de impiedade. Quando isto acontecia os habitantes ficavam muito agitados e clamavam, juntamente com gestos significativos: “Eles não são cristãos!”
 A pouco e pouco este erro irreverente foi sendo em grande parte corrigido e por meio desta manobra pia muitos incorrigíveis heréticos tornaram-se verdadeiros «bons cristãos». Depois continuámo-nos a aperfeiçoar segundo as ideias religiosas deles, afirmando que o nosso regimento era formado por um conjunto de fiéis da verdadeira igreja, servidores de um grande convento na Irlanda, e constituído para lutar contra os infiéis franceses. E para lhes tirarmos as dúvidas e escrúpulos mostrávamos mesmo a mal desenhada imagem de um castelo, que figurava nas nossas placas peitorais, como sendo a mansão dos nossos reverendos senhores.
Descobrimos também que o povo mostrava tendência para considerar melhor certos nomes, como António, o nome de um dos santos mais venerados naquele santo país; e rapidamente o número de militares que se tratavam por este nome excedeu todos os outros nomes no nosso regimento.”
E assim, com este truque burlão, a paz religiosa entre os habitantes e este regimento inglês foi alcançada – com reforço do desprezo inglês pela credulidade fácil dos portugueses...

(1)  Peninsular Sketches by actors on the scene, London, 1845.
(2)  A Irlanda, apesar de colonizada pelos ingleses, manteve-se sempre fiel ao Catolicismo.

                                                                                          





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